São Paulo, sábado, 03 de junho de 2006

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LIVROS

Mia Couto ironiza visão sobre África

Moçambicano vem ao Brasil lançar "O Outro Pé da Sereia", que critica a busca de identidade racial e globalização

Mulheres têm papel central no livro do autor, que ataca olhar mistificador e "folclorizado" sobre o continente e suas raízes


MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

Junto dos angolanos Luandino Vieira e Pepetela, o moçambicano Mia Couto é um dos grandes representantes da literatura africana de língua portuguesa. Seguidor declarado de Guimarães Rosa, ele volta ao Brasil na próxima semana para lançar "O Outro Pé da Sereia", que utiliza a alegoria e o universo das fábulas para falar da identidade. O livro começa com um satélite caindo, dando origem a uma viagem iniciática que remete à colonização portuguesa, no século 16. Diferentes épocas se misturam, misticismo se choca com a globalização -a atual e a dos portugueses. O olhar mistificado do passado africano é tema do escritor, que ironiza a identidade cultural e racial (os personagens mudam de cor ao longo da história), como disse à Folha.

 

FOLHA - Há uma crítica intencional à globalização em seu livro? MIA COUTO - Sim, na medida em que a globalização obriga a procura de uma identidade. Moçambique é feito de diversidades profundas. Há aqui uma espécie de globalização à escala de uma nação, uma procura de identidade que é inventada, imposta. Procura-se um retrato simples, redutor. É um processo que ocorre também na escala individual.

FOLHA - Você usa ironia ao retratar o americano que busca suas raízes... COUTO - Esse questionamento a partir de características étnicas, até sexuais, é uma coisa que me persegue desde que comecei a escrever. Tenho um livro que se chama "Cada Homem É uma Raça" e, quando perguntam ao personagem sua raça, ele responde: "Minha raça sou eu mesmo". No fundo cada homem é uma espécie de humanidade individual.

FOLHA - Você também ironiza a assistência dos países desenvolvidos... COUTO - Acho que precisamos questionar a relação entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo. Não se trata de pedir mais, mas de que tirem menos de nós. Não só da riqueza material, mas da possibilidade de nos repensarmos.

FOLHA - As mulheres têm uma papel central no seu livro. Por quê? COUTO - Pela realidade africana. As mulheres têm um papel dominante naquilo que é construção, criação de redes sociais, de um sentimento de futuro. Os homens têm um papel dispendioso, são eles que gastam. Há uma ordem machista, sobretudo no meio rural.

FOLHA - Você utiliza elementos da tradição oral e das histórias populares. O que é criação sua? COUTO - Há uma combinação. Sou biólogo e trabalho muito nas zonas rurais. Faço uma recolha daquilo que são elementos de uma certa visão poética do mundo, uma visão da oralidade que ainda é dominante nessas zonas.

FOLHA - O que você achou da premiação de Luandino Vieira com o Camões 2006 e da recusa dele em recebê-lo? COUTO - A premiação é perfeitamente justa. Ele teve um papel importantíssimo. Provavelmente a sua recusa vem na esteira de seu exílio de tudo, do mundo inteiro. Há anos que ele vive num mosteiro no norte de Portugal, não comparece a nenhuma cerimônia. É um homem que se assimilou como uma espécie de eremita.


O OUTRO PÉ DA SEREIA
Autor:
Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (336 págs.)
Lançamento: ter., às 20h, no Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, tel. 0/xx/11/5080-3000), com palestra do autor; haverá distribuição de senhas a partir das 19h na bilheteria.

NA INTERNET - Leia trecho www.folha.com.br/061531


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