São Paulo, sábado, 03 de junho de 2006

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Crítica/Infantil

Ilustração de "Aprendiz de Feiticeiro" rompe estereótipo Disney

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Basta pensar no "Aprendiz de Feiticeiro", que vêm à mente as imagens de Mickey, com seu chapéu estrelado de bruxo, no clássico "Fantasia" de Walt Disney. Ilustrar de forma diferente a velha balada de Goethe (1749-1832) é um desafio que Nelson Cruz enfrentou com garra, na edição que a Cosacnaify lançou agora, com tradução de Mônica Costa, na coleção infanto-juvenil "Dedinho de Prosa". "Infanto-juvenil" é um mau termo, e talvez especialmente inadequado para esta série de livros em capa dura, que terá em seus próximos lançamentos uma excelente crônica de Mário de Andrade ("Será o Benedito") e um texto de Boccaccio (1313-1375). Sem expedientes para facilitar a linguagem do original -exceto um glossário no fim de cada volume-, os curtíssimos textos da coleção "Dedinho de Prosa" podem perfeitamente servir para se dar de presente a uma pessoa adulta. Já foi publicado, também com ilustrações de Nelson Cruz, o perturbador "Conto de Escola", de Machado de Assis, além de "O Homem que Sabia Javanês", de Lima Barreto, e "O Presente dos Magos", de O. Henry, com ilustrações de Odilon Moraes.

Meios tons
Para os contos de O. Henry e Lima Barreto, Odilon Moraes utiliza uma linda gama de negro, marfim, creme e sépia, lembrando fotos do século 19 e as sombras molhadas, chuvosas, de algumas produções do quadrinista Will Eisner. O realismo irônico, em meios tons, de O. Henry e Lima Barreto ganha cores mais vibrantes num detalhe -o vermelho de um nariz, o verde de um veludo-, como a dar conta de que há certo exagero (sentimental num caso, crítico em outro) no enredo de cada história. Já o traço de Nelson Cruz, no "Conto de Escola" de Machado de Assis, busca aproximar-se mais do público infantil, ao mesmo tempo em que investe em maiores exageros de expressão e perspectiva.

Feitiço à brasileira
No caso de "O Aprendiz de Feiticeiro", as ilustrações hesitam entre representar um tanque de água (onde a vassoura encantada por Mickey ia encher seu balde de madeira) e as margens de um rio (a que se refere o original de Goethe). Pode bem ser que essa hesitação de significado funcione como uma crítica à "tradução" feita por Disney a partir do poema alemão. Escrito em 1797, "Der Zauberlehrling" tem atrás de si a experiência desastrosa dos franceses com o regime do Terror, imposto por Robespierre depois de 1793. Os "rios de sangue" e assassinatos de Estado que resultaram de uma experiência democrática radical sugerem, sem dúvida, uma espécie de "feitiço contra o feiticeiro", que para o conservador Goethe só poderia cessar quando a velha ordem pusesse o aprendiz em seu devido lugar. A originalidade de Nelson Cruz está em transpor a história para a periferia de alguma grande cidade brasileira. O aprendiz ganha roupas de pivete, o rio é uma espécie de Tietê, e o laboratório do bruxo se situa numa espécie de favela onde as escadarias e pontes têm o aspecto sem saída dos labirintos de Escher. Nada de "infanto-juvenil", portanto, nesta bem cuidada coleção.


O APRENDIZ DE FEITICEIRO     
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 36 (32 págs.)


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