São Paulo, quarta, 3 de junho de 1998

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'Ninguém me leu, mas fui até o fim', diz Hilda Hilst


Poeta diz à Folha que quer esquecer a literatura no mesmo mês em que tem dois livros lançados pela editora Nankin


ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Hilda Hilst passa ao largo das indicações que a apontam, com frequência cada vez maior, como referência importante na literatura brasileira. Hilda está absorvida, neste momento, em ajustar uma peça importante de seu quebra-cabeça pessoal.
Dois livros seus -uma edição bilíngue de poemas escritos em 1980 ("Da Morte. Odes Mínimas") e outra de crônicas publicadas em jornal ("Cascos e Carícias")- estão sendo lançados este mês, em São Paulo.
Mas sua literatura, que a monopolizou "por 30 anos consecutivos e outros tantos", está cada vez mais distante de seu horizonte -"Leio muito, mas desisti de escrever, já foi demais"-, e são as circunstâncias de sua vida que a fazem entrever os contornos de um quadro cujo tema não domina totalmente, mas que a assusta.
"É tudo um mistério: eu fui linda, rica, tive uma vida deslumbrante, namoros, viagens..., mas agora parece que cagou tudo", diz ela, às voltas com um processo da prefeitura de Campinas, por falta de pagamento do IPTU de sua propriedade, a 11 km da cidade.
"Em pouco tempo a dívida passou de R$ 68 mil para R$ 140 mil ou mais, e dizem que em junho vai tudo a leilão, coisas vendidas por uma bagatela. Eu não tenho medo de morrer na miséria, acho que não é o meu carma; mas os bichos me preocupam", diz, referindo-se a seus 70 cães.
"A situação com a prefeitura não permite que eu tenha a escritura definitiva das terras, e ao mesmo tempo elas não são aceitas em pagamento da dívida. Não parece coisa de Kafka?", indaga Hilda, que anda hipersensibilizada pela "doença" (hipertensão, problemas respiratórios e hepáticos).
Ela se interrompe com frequência para tossir, e seu peito "ronca" audivelmente, às vezes por minutos. Mas continua consumindo diariamente mais de dois maços de cigarros e se automedica, ingerindo dezenas de cálices de vinho do Porto, a partir das 11h.
"E à noite bebo só "uns três' uísques. Marguerite Duras bebia muito mais; eu sou comportadíssima perto dela", acredita.
Aos 68 anos, embora queixando-se de certa paralisia facial, sequela de uma isquemia recente, a beleza de seu rosto é indelével.
A queixa maior, recorrente em sua fala, é outra, a mesma de muitos anos: ninguém a lê, e os livros nunca deram dinheiro -o último, "Estar Sendo. Ter Sido" (ed. Nankin, maio de 97) vendeu apenas 1.600 exemplares até hoje.
No entanto, o interesse por sua literatura no exterior não pára de crescer, principalmente a partir dos títulos associados à pornografia, estratégia de conquista de público inaugurada em 1990 -na verdade, o registro é o mesmo de toda sua prosa anterior.
No Brasil, não deu muito certo. Na Europa, depois de duas traduções para o francês, pela editora Gallimard, e uma para o italiano ("O Caderno Rosa de Lori Lamby", editora Sonzogno), seu "A Obscena Senhora D" está sendo vertido para o alemão. E "Rútilo Nada" ganhou versão em inglês, nos EUA. Mas as vendas não decolaram, e ela recebeu até hoje somente US$ 800, dos franceses.
Há alguns meses, Hilda chegou a oferecer à Cia. das Letras, por R$ 70 mil, os direitos de toda a sua obra -17 volumes de poesia, 11 de prosa e oito peças de teatro inéditas em livro. Não houve interesse.
Mas foi o interesse do leitor de língua francesa por Hilda (na Europa e Canadá), que motivou a pequena editora Nankin a publicar agora "Da Morte. Odes Mínimas" (1980) em edição bilíngue, além de uma seleção de crônicas escritas entre 92 e 95 para o jornal "Correio Popular", de Campinas (apenas em português).
Também no teatro, a prosa da escritora é frequentemente adaptada: "Volúpia", da encenadora Ana Kfouri, é exemplo recente. A autora não mostra entusiasmo por nada disso. Prazer mesmo ela deixa patente ao ouvir a pornografia culta de seus poemas de "Bufólicas" (92, ed. Massao Ohno) recitada pelo repórter, a seu pedido.




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