São Paulo, sábado, 03 de julho de 2004

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RODAPÉ

O inferno são os outros

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Dia dos Mortos", livro de estréia de Marcelo Ferroni, se insere num contexto de renovação da narrativa urbana brasileira, com nove contos cujo tema dominante são os ressentimentos e frustrações instaurados pelas diferenças sociais.
Para situar o leitor familiarizado com essa produção, basta dizer que há em Ferroni algo das "histórias de remorsos e rancores" de Luiz Ruffato, bem como do procedimento estilístico, muito explorado por Fernando Bonassi, de mimetizar um universo asfixiante pelo acúmulo de imagens da falta de perspectiva econômica e da degradação existencial: a mesa de fórmica lascada, a toalha de plástico engordurada grudando nos braços, o lixo sobre a pia transbordando ossos de frango chupados, a televisão comprada no crediário emitindo uma "ladainha sem sintonia" após o almoço dominical.
Mas a comparação não visa diminuir a originalidade de "Dia dos Mortos". Pelo contrário, há no livro de Ferroni uma percepção aguda de que o entulho afetivo de suas personagens se desdobra numa torturante incerteza em relação ao modo como são vistas e como vêem a si mesmas. Mais do que o terror econômico, o que oprime seus office-boys e mauricinhos é a sensação de que sua auto-imagem é tão frágil quanto os clichês com os quais se referem aos outros.
Assim, em "Os Últimos Dias de Pompéia", o narrador enfrenta uma horda de torcedores de futebol na saída de um shopping center, e os mesmo estereótipos que usa contra a "turba de maloqueiros" ("Olha só aquele negrinho, parece que escapou da Febem"; "Quando saímos do West Plaza, a mestiçagem deixava o estádio") logo se voltam contra ele, quando a namorada "alternativa" abandona o "yuppie" de terno e gravata num bar freqüentado por "garotos da MTV".
Essa sucessão de clichês, logo no primeiro conto do livro, é a porta de entrada para narrativas que materializam nossa falta de lastro da realidade e a fluidez dos papéis sociais -fluidez que contrasta com a violenta obrigação (inoculada nos lugares-comuns da linguagem) de ter uma identidade estável.
Por isso as personagens de Ferroni tentam o tempo todo reescrever e reinterpretar suas trajetórias pessoais: a mulher de classe média que reconstitui acidente sofrido pelo pai, desvendando sua vida familiar paralela ("Nada Além de Flores"); o rapaz que, em visita à casa da namorada, se desilude ao ver fotos que mostram como a moça era gorda e disforme ("Por que Eu Fugi"); a mãe que procura uma "terapia de vidas passadas", arruinando as economias domésticas ("O Repovoamento").
Em raros momentos, tal necessidade de reinventar a história perde tensão e gravidade, como no conto "As Dores da Princesa" (versão fantasiosa da morte da princesa Diana, que teria morrido numa balada com seus guarda-costas brasileiros). Mas uma narrativa como "Mulher de Cubatão; Menina-Lagarto" (cena "pós-coito" em que dois colegas de escritório vão descobrindo como são realmente tratados no ambiente de trabalho) mostra o vigor com que o escritor descreve essa alienação no discurso e no olhar alheios. Para Marcelo Ferroni, como para Sartre, "o inferno são os outros".


Dia dos Mortos
    
Autor: Marcelo Ferroni
Editora: Globo
Quanto: R$ 25 (152 págs.)



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