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RODAPÉ
O inferno são os outros
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Dia dos Mortos", livro de
estréia de Marcelo Ferroni, se insere num contexto de renovação da narrativa urbana brasileira, com nove contos cujo tema dominante são os ressentimentos e frustrações instaurados
pelas diferenças sociais.
Para situar o leitor familiarizado
com essa produção, basta dizer
que há em Ferroni algo das "histórias de remorsos e rancores" de
Luiz Ruffato, bem como do procedimento estilístico, muito explorado por Fernando Bonassi, de
mimetizar um universo asfixiante
pelo acúmulo de imagens da falta
de perspectiva econômica e da degradação existencial: a mesa de
fórmica lascada, a toalha de plástico engordurada grudando nos
braços, o lixo sobre a pia transbordando ossos de frango chupados, a televisão comprada no crediário emitindo uma "ladainha
sem sintonia" após o almoço dominical.
Mas a comparação não visa diminuir a originalidade de "Dia
dos Mortos". Pelo contrário, há
no livro de Ferroni uma percepção aguda de que o entulho afetivo de suas personagens se desdobra numa torturante incerteza em
relação ao modo como são vistas
e como vêem a si mesmas. Mais
do que o terror econômico, o que
oprime seus office-boys e mauricinhos é a sensação de que sua auto-imagem é tão frágil quanto os
clichês com os quais se referem
aos outros.
Assim, em "Os Últimos Dias de
Pompéia", o narrador enfrenta
uma horda de torcedores de futebol na saída de um shopping center, e os mesmo estereótipos que
usa contra a "turba de maloqueiros" ("Olha só aquele negrinho,
parece que escapou da Febem";
"Quando saímos do West Plaza, a
mestiçagem deixava o estádio")
logo se voltam contra ele, quando
a namorada "alternativa" abandona o "yuppie" de terno e gravata num bar freqüentado por "garotos da MTV".
Essa sucessão de clichês, logo no
primeiro conto do livro, é a porta
de entrada para narrativas que
materializam nossa falta de lastro
da realidade e a fluidez dos papéis
sociais -fluidez que contrasta
com a violenta obrigação (inoculada nos lugares-comuns da linguagem) de ter uma identidade
estável.
Por isso as personagens de Ferroni tentam o tempo todo reescrever e reinterpretar suas trajetórias pessoais: a mulher de classe
média que reconstitui acidente
sofrido pelo pai, desvendando sua
vida familiar paralela ("Nada
Além de Flores"); o rapaz que, em
visita à casa da namorada, se desilude ao ver fotos que mostram como a moça era gorda e disforme
("Por que Eu Fugi"); a mãe que
procura uma "terapia de vidas
passadas", arruinando as economias domésticas ("O Repovoamento").
Em raros momentos, tal necessidade de reinventar a história
perde tensão e gravidade, como
no conto "As Dores da Princesa"
(versão fantasiosa da morte da
princesa Diana, que teria morrido
numa balada com seus guarda-costas brasileiros). Mas uma narrativa como "Mulher de Cubatão;
Menina-Lagarto" (cena "pós-coito" em que dois colegas de escritório vão descobrindo como são
realmente tratados no ambiente
de trabalho) mostra o vigor com
que o escritor descreve essa alienação no discurso e no olhar
alheios. Para Marcelo Ferroni, como para Sartre, "o inferno são os
outros".
Dia dos Mortos
Autor: Marcelo Ferroni
Editora: Globo
Quanto: R$ 25 (152 págs.)
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