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DVDS
"DIÁRIOS DE MOTOCICLETA"
Filme retrata viagem de Che Guevara em 1952
Longa sublima a violência em sua beleza acadêmica
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO
"Diários de Motocicleta",
história da viagem de Ernesto "Che" Guevara pelas Américas em 1952, é o filme mais convencional de Walter Salles. É também o melhor de sua carreira. A
coincidência não é fruto do acaso.
Salles é um diretor convencional,
que arriscou alguns volteios mais
radicais, sem grande resultado: o
academicismo exerce sobre ele
uma sedução incontrolável.
Ele poderia ter ido mais longe,
sim, poderia. Mas, seja por timidez, seja por formação, seja até
mesmo por uma questão de gosto
e delicadeza, preferiu não arriscar. À medida em que ia aceitando o convencionalismo, o sucesso
foi se aproximando de sua porta.
Hoje, perfeitamente ajustado à
linguagem do cinema acadêmico,
se tornou o mais célebre diretor
brasileiro em atividade. Salles
quer ser amado pelo público.
Seus personagens também querem ser amados. Assim é o Guevara de Walter Salles: um sujeito
frágil, honesto e altruísta, que merece o nosso amor. Vamos esquecer, por ora, de toda a crueldade
revolucionária do camarada Che,
de sua violência e também de seu
visionarismo radical -fiquemos
apenas com a ternura pré-marxista do jovem Ernesto.
"Diários de Motocicleta" é um
filme sobre a consciência terna e
compassiva. Não é precisamente
um filme político, mas um melodrama cristão. Ele configura um
Che adequado a esta época em
que o assistencialismo substituiu
a política, como ressaltou José Geraldo Couto, numa ótima crítica
publicada nesta Folha.
Convencional e compassivo,
"Diários da Motocicleta" resulta
num filme em que a beleza, no
fundo, funciona como sublimação da violência da vida e da política e como redenção para o espectador. Nele, tudo tende ao belo, não há experiência de choque
na forma, não há dissonâncias,
não há ranhuras, a feiúra do mundo não perturba a superfície serena da tela. Enquanto o personagem Guevara toma consciência
da injustiça e da miséria, o olhar
da câmera ajusta as arestas de tudo em volta, candidamente.
É uma contradição, claro, mas o
espectador nem percebe, de tal
modo está encantado com as paisagens da América do Sul, emocionado com a dignidade dos pobres e leprosos, envolvido com o
anedotário da viagem e magnetizado pelos bons intérpretes (Gael
García Bernal, como Guevara, e
Rodrigo de la Serna, como Granado, o colega bufo de viagem).
Poderia ser diferente? Talvez.
Onde estão as hesitações do jovem Guevara, as incongruências,
as simplificações, o embate entre
lirismo e realidade, a gestação da
revolta e a produção do pensamento político? Onde está a violência da imaginação e do verbo,
como numa das anotações do
adolescente no final da viagem:
"Estarei com o povo; tingirei de
sangue minha arma e, louco de
fúria, degolarei meus inimigos
vencidos. Já sinto as narinas dilatadas saboreando o acre odor de
pólvora e sangue, da morte do inimigo"? Onde está tudo isso que os
diários de viagem do futuro revolucionário expõem tão francamente -e que tão pouco aparece
no perfil de predestinado bondoso do Che de Walter Salles?
Diários de Motocicleta
Direção: Walter Salles
Distribuidora: Buena Vista; R$ 40
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