São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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DVDS

"DIÁRIOS DE MOTOCICLETA"

Filme retrata viagem de Che Guevara em 1952

Longa sublima a violência em sua beleza acadêmica

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

"Diários de Motocicleta", história da viagem de Ernesto "Che" Guevara pelas Américas em 1952, é o filme mais convencional de Walter Salles. É também o melhor de sua carreira. A coincidência não é fruto do acaso. Salles é um diretor convencional, que arriscou alguns volteios mais radicais, sem grande resultado: o academicismo exerce sobre ele uma sedução incontrolável.
Ele poderia ter ido mais longe, sim, poderia. Mas, seja por timidez, seja por formação, seja até mesmo por uma questão de gosto e delicadeza, preferiu não arriscar. À medida em que ia aceitando o convencionalismo, o sucesso foi se aproximando de sua porta. Hoje, perfeitamente ajustado à linguagem do cinema acadêmico, se tornou o mais célebre diretor brasileiro em atividade. Salles quer ser amado pelo público.
Seus personagens também querem ser amados. Assim é o Guevara de Walter Salles: um sujeito frágil, honesto e altruísta, que merece o nosso amor. Vamos esquecer, por ora, de toda a crueldade revolucionária do camarada Che, de sua violência e também de seu visionarismo radical -fiquemos apenas com a ternura pré-marxista do jovem Ernesto.
"Diários de Motocicleta" é um filme sobre a consciência terna e compassiva. Não é precisamente um filme político, mas um melodrama cristão. Ele configura um Che adequado a esta época em que o assistencialismo substituiu a política, como ressaltou José Geraldo Couto, numa ótima crítica publicada nesta Folha.
Convencional e compassivo, "Diários da Motocicleta" resulta num filme em que a beleza, no fundo, funciona como sublimação da violência da vida e da política e como redenção para o espectador. Nele, tudo tende ao belo, não há experiência de choque na forma, não há dissonâncias, não há ranhuras, a feiúra do mundo não perturba a superfície serena da tela. Enquanto o personagem Guevara toma consciência da injustiça e da miséria, o olhar da câmera ajusta as arestas de tudo em volta, candidamente.
É uma contradição, claro, mas o espectador nem percebe, de tal modo está encantado com as paisagens da América do Sul, emocionado com a dignidade dos pobres e leprosos, envolvido com o anedotário da viagem e magnetizado pelos bons intérpretes (Gael García Bernal, como Guevara, e Rodrigo de la Serna, como Granado, o colega bufo de viagem).
Poderia ser diferente? Talvez. Onde estão as hesitações do jovem Guevara, as incongruências, as simplificações, o embate entre lirismo e realidade, a gestação da revolta e a produção do pensamento político? Onde está a violência da imaginação e do verbo, como numa das anotações do adolescente no final da viagem: "Estarei com o povo; tingirei de sangue minha arma e, louco de fúria, degolarei meus inimigos vencidos. Já sinto as narinas dilatadas saboreando o acre odor de pólvora e sangue, da morte do inimigo"? Onde está tudo isso que os diários de viagem do futuro revolucionário expõem tão francamente -e que tão pouco aparece no perfil de predestinado bondoso do Che de Walter Salles?


Diários de Motocicleta
   
Direção: Walter Salles
Distribuidora: Buena Vista; R$ 40



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