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FERREIRA GULLAR
Lula versus PT
A esta altura dos acontecimentos, fico me perguntando o que aconteceu com essa ala
da esquerda chamada Partido dos
Trabalhadores. Como bom virginiano, não paro de esmiuçar as
coisas que me dizem respeito e aos
demais, como é o caso do destino
desse partido que nasceu como
um aceno de esperança e renovação da política brasileira e, agora,
tendo assumido o governo do país,
revela-se uma decepção.
Nunca pertenci ao PT, mas, no
momento em que ele nascia, defendi-o de alguns companheiros
do PCB, que viam nele uma
ameaça à luta pelo socialismo. Temiam que se tratasse de um embuste que poderia arrastar os trabalhadores para uma aventura
desastrosa. Eu respondia: "Nós,
em quase 60 anos, não conseguimos conquistar a maioria da classe operária. Vamos deixar que eles
tentem".
No final da década de 70, a ditadura fazia água. O Partido Comunista, aliado a setores do MDB,
viu que chegara a hora de isolá-la,
chamando para a luta o empresariado que já dava demonstrações
de descontentamento. A gente sabia que o golpe militar ajudara a
burguesia a sair de seus impasses,
mas que o seu regime ideal é a democracia, que lhe permite atuar
livremente. Marcou-se um ato público, no teatro Casa Grande, no
Rio, para consolidar a aliança das
esquerdas com o empresariado e
se convidaram figuras empresariais de prestígio ao lado do jovem
líder operário Luiz Inácio da Silva, o Lula. Veio com ele, entre outros, um intelectual chamado
Francisco Weffort, que quase entornou o caldo: resolveu cobrar de
público a colaboração do empresariado com os torturadores da
Operação Bandeirantes. Levamos
um susto, mas, felizmente, alguém
se levantou e desautorizou a cobrança inoportuna. Esse era o tipo
de gente que rodeava Lula e que
deu origem ao PT.
Havia outros, entre os quais José
Dirceu, Genoino, Frei Betto, quase
todos caracterizados por uma visão radical, gente que participou
da luta armada ou a apoiou. Gente antipartidão. Esse era um dos
traços mais típicos desse grupo.
Pois bem. Um mês após o golpe de
1964, o PCB lançara um documento afirmando que o caminho
para derrotar a ditadura era a luta pelas liberdades democráticas.
"Ocupemos todos os espaços que
nos permitam organizar e conscientizar o povo", dizia o documento. Mas, dentro do próprio
partido, havia quem apostasse na
luta armada e que tentou me aliciar. Respondi que não teria sentido deslocar a luta para o terreno
militar, onde a ditadura era mais
forte. Embora, em 1979, a luta armada já tivesse sido derrotada, o
radicalismo persistia na cabeça
daquele pessoal.
Lula nunca foi de esquerda, como ele mesmo afirmou recentemente. Era um líder sindical carismático, inteligente e hábil -o homem que faltava para os derrotados da luta armada, que só tinham idéias, mas não tinham povo. Já Lula, que tinha povo, não tinha idéias que lhe permitissem
tornar-se o chefe de um partido
político. Juntou-se a fome com a
vontade de comer: nasceu o PT.
Assim, o PT -se meu raciocínio
virginiano estiver correto- é fruto de um acordo tácito entre duas
coisas heterogêneas, mas afins: a
ambição política de Lula e a visão
revolucionária da esquerda radical. Lula se imaginou um Lech
Walesa sul-americano, mas os
seus novos companheiros -todos
barbudos- imaginavam-no um
Fidel Castro. Ele, ladino, deixou
crescer a barba também.
E eis que, finda a ditadura, Lula
é eleito para a Assembléia Nacional Constituinte, mas, pouco afeito à elaboração de leis, mal aparece lá. Pronta a nova Constituição,
dispõe-se a assiná-la, mas o PT o
impede: não aprovava aquela
Constituição burguesa.
Não obstante, na primeira eleição direta para a Presidência da
República, Lula se candidata, disputa com Fernando Collor e perde; nas eleições seguintes, candidata-se de novo, disputa com Fernando Henrique Cardoso e perde
de novo. Em ambos os casos, não
chega a 30% dos votos válidos.
Mas o PT elege deputados que fazem uma feroz oposição ao presidente eleito. Em 1998, nova eleição para presidente, Lula disputa
outra vez com Fernando Henrique e é outra vez derrotado. Ao se
aproximarem as eleições presidenciais de 2002, muda de atitude.
- Se for para perder de novo,
não me candidato.
Era um recado ao PT que, traduzido, significava o seguinte: só
me candidatarei de novo à Presidência da República se não tiver
que me submeter ao programa
radical do partido nem às alianças estreitas com os pequenos partidos de esquerda. O velho acordo
Lula-PT tinha chegado a seu limite, uma vez que a imposição
dos radicais, submetendo Lula a
sucessivas derrotas, tornara-se intolerável para ele. Ou o PT reduzia seu radicalismo, ou não haveria candidatura. A cúpula petista
radical recua, Lula busca aliança
com o PL e muda o discurso eleitoral. Nasce o Lula bom moço,
sorridente, que não quer briga
com ninguém -e ganha as eleições.
Empossado, tem que impedir
que o radicalismo petista ponha
tudo a perder: mantém a política
de FHC e nomeia um banqueiro e
dois empresários para os ministérios fundamentais. O PT, por sua
vez, ocupa a máquina estatal e
compra deputados para não abrir
mão do aparelhamento. Eclode a
crise que desmoraliza o PT e, teoricamente, liberta Lula. Cabe, porém, perguntar: existe o PT sem
Lula? Existe Lula sem o PT?
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