São Paulo, domingo, 03 de julho de 2005

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FERREIRA GULLAR

Lula versus PT

A esta altura dos acontecimentos, fico me perguntando o que aconteceu com essa ala da esquerda chamada Partido dos Trabalhadores. Como bom virginiano, não paro de esmiuçar as coisas que me dizem respeito e aos demais, como é o caso do destino desse partido que nasceu como um aceno de esperança e renovação da política brasileira e, agora, tendo assumido o governo do país, revela-se uma decepção.
Nunca pertenci ao PT, mas, no momento em que ele nascia, defendi-o de alguns companheiros do PCB, que viam nele uma ameaça à luta pelo socialismo. Temiam que se tratasse de um embuste que poderia arrastar os trabalhadores para uma aventura desastrosa. Eu respondia: "Nós, em quase 60 anos, não conseguimos conquistar a maioria da classe operária. Vamos deixar que eles tentem".
No final da década de 70, a ditadura fazia água. O Partido Comunista, aliado a setores do MDB, viu que chegara a hora de isolá-la, chamando para a luta o empresariado que já dava demonstrações de descontentamento. A gente sabia que o golpe militar ajudara a burguesia a sair de seus impasses, mas que o seu regime ideal é a democracia, que lhe permite atuar livremente. Marcou-se um ato público, no teatro Casa Grande, no Rio, para consolidar a aliança das esquerdas com o empresariado e se convidaram figuras empresariais de prestígio ao lado do jovem líder operário Luiz Inácio da Silva, o Lula. Veio com ele, entre outros, um intelectual chamado Francisco Weffort, que quase entornou o caldo: resolveu cobrar de público a colaboração do empresariado com os torturadores da Operação Bandeirantes. Levamos um susto, mas, felizmente, alguém se levantou e desautorizou a cobrança inoportuna. Esse era o tipo de gente que rodeava Lula e que deu origem ao PT.
Havia outros, entre os quais José Dirceu, Genoino, Frei Betto, quase todos caracterizados por uma visão radical, gente que participou da luta armada ou a apoiou. Gente antipartidão. Esse era um dos traços mais típicos desse grupo. Pois bem. Um mês após o golpe de 1964, o PCB lançara um documento afirmando que o caminho para derrotar a ditadura era a luta pelas liberdades democráticas. "Ocupemos todos os espaços que nos permitam organizar e conscientizar o povo", dizia o documento. Mas, dentro do próprio partido, havia quem apostasse na luta armada e que tentou me aliciar. Respondi que não teria sentido deslocar a luta para o terreno militar, onde a ditadura era mais forte. Embora, em 1979, a luta armada já tivesse sido derrotada, o radicalismo persistia na cabeça daquele pessoal.
Lula nunca foi de esquerda, como ele mesmo afirmou recentemente. Era um líder sindical carismático, inteligente e hábil -o homem que faltava para os derrotados da luta armada, que só tinham idéias, mas não tinham povo. Já Lula, que tinha povo, não tinha idéias que lhe permitissem tornar-se o chefe de um partido político. Juntou-se a fome com a vontade de comer: nasceu o PT.
Assim, o PT -se meu raciocínio virginiano estiver correto- é fruto de um acordo tácito entre duas coisas heterogêneas, mas afins: a ambição política de Lula e a visão revolucionária da esquerda radical. Lula se imaginou um Lech Walesa sul-americano, mas os seus novos companheiros -todos barbudos- imaginavam-no um Fidel Castro. Ele, ladino, deixou crescer a barba também.
E eis que, finda a ditadura, Lula é eleito para a Assembléia Nacional Constituinte, mas, pouco afeito à elaboração de leis, mal aparece lá. Pronta a nova Constituição, dispõe-se a assiná-la, mas o PT o impede: não aprovava aquela Constituição burguesa.
Não obstante, na primeira eleição direta para a Presidência da República, Lula se candidata, disputa com Fernando Collor e perde; nas eleições seguintes, candidata-se de novo, disputa com Fernando Henrique Cardoso e perde de novo. Em ambos os casos, não chega a 30% dos votos válidos. Mas o PT elege deputados que fazem uma feroz oposição ao presidente eleito. Em 1998, nova eleição para presidente, Lula disputa outra vez com Fernando Henrique e é outra vez derrotado. Ao se aproximarem as eleições presidenciais de 2002, muda de atitude.
- Se for para perder de novo, não me candidato.
Era um recado ao PT que, traduzido, significava o seguinte: só me candidatarei de novo à Presidência da República se não tiver que me submeter ao programa radical do partido nem às alianças estreitas com os pequenos partidos de esquerda. O velho acordo Lula-PT tinha chegado a seu limite, uma vez que a imposição dos radicais, submetendo Lula a sucessivas derrotas, tornara-se intolerável para ele. Ou o PT reduzia seu radicalismo, ou não haveria candidatura. A cúpula petista radical recua, Lula busca aliança com o PL e muda o discurso eleitoral. Nasce o Lula bom moço, sorridente, que não quer briga com ninguém -e ganha as eleições.
Empossado, tem que impedir que o radicalismo petista ponha tudo a perder: mantém a política de FHC e nomeia um banqueiro e dois empresários para os ministérios fundamentais. O PT, por sua vez, ocupa a máquina estatal e compra deputados para não abrir mão do aparelhamento. Eclode a crise que desmoraliza o PT e, teoricamente, liberta Lula. Cabe, porém, perguntar: existe o PT sem Lula? Existe Lula sem o PT?


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