São Paulo, segunda-feira, 03 de julho de 2006

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NELSON ASCHER

A invenção do silêncio


Por mais ruidoso que o mundo contemporâneo soe, é lícito pensar que o silêncio seja recente

"EU GOSTO de olhar" é o bordão que o jardineiro oligofrênico Chance/ Chauncy (Peter Sellers) repete a toda hora em "Muito Além do Jardim" ("Being There", 1979). "To watch", o verbo original, tem, no entanto, muito mais acepções em inglês: "ver", "assistir a", "observar" etc. É graças a essa multiplicidade de sentidos que cada qual de seus interlocutores interpreta a lacônica (e nada enigmática) frase de maneira diferente, dando-lhe em geral o significado que ele ou ela prefere (o que combina com o nome do protagonista que se traduz como "acaso"). Olhar, nessas circunstâncias, equivale menos a ver neutralmente do que a interpretar quanto os olhos, de acordo com seu ponto de vista, percebam.
A interpretação visual é uma habilidade inata de nossa espécie. Nem é difícil imaginar contextos nos quais interpretar adequadamente o visto, ou seja, mais do que vendo algo delimitado, mostrar-se apto a associá-lo com outras tantas coisas não presentes nem vistas, torne-se vital. Ligar os rastros encontrados na selva ao bicho certo pode ser, para um caçador, a diferença entre se alimentar e terminar como alimento. Num tipo distinto de caça, é decifrar corretamente os sinais enviados pela presa ou pelo caçador que determina o desfecho da noite, do mês ou, no pior dos casos, dos anos seguintes.
As formas de olhar descritas acima constituem, sem dúvida, uma espécie de leitura ou, antes, o pressuposto mental da leitura propriamente dita. Borrões de tinta que, numa página, nada dizem ao iletrado são, para um leitor qualquer, mensagens claramente inteligíveis. Vale dizer: não é necessário que existisse um gene da escrita para que nossa espécie estivesse predisposta a inventá-la. Sabemos que, vinte milênios antes de esta comprovadamente surgir, nossos ancestrais já dominavam a figuração e desenhavam tanto animais como seres humanos esquemáticos em superfícies bidimensionais.
O momento crucial teria ocorrido quando, à aptidão de interpretar (e criar) sinais, o homem associou sua capacidade de se comunicar através de sons encadeados e articulados. O encontro de ambas foi o grande salto, pois, malgrado o que se pense a respeito dos ideogramas (que não se comunicam direta nem independentemente), a escrita só se realiza de fato quando se liga à linguagem falada. (Paralelamente, embora bem mais tarde, a complexidade musical do Ocidente decorreu da descoberta de que os sons eram visivelmente codificáveis.)
Uma comédia africana bem fundamentada na antropologia, "Os Deuses Devem Estar Loucos" ("The Gods Must Be Crazy"; primeira parte 1980, segunda parte 1989), sobre os boxímanes do deserto do Kalahari, mostra-nos quão loquazes eram os membros das culturas anteriores à invenção da escrita. A impressão que o filme dá é a de que os povos tribais, viciados no som da própria voz, paravam de falar apenas para dormir, se é que não falavam também durante o sono. Por mais ruidoso que o mundo contemporâneo soe, é lícito pensar que o silêncio seja uma invenção recente ou moderna, uma disciplina, aliás, que requer supervisão e admoestações constantes.
Por estranho que pareça, as capacidades de apreender com olhos e com ouvidos mantêm-se mais ou menos separadas na mente e não se distribuem igualmente entre os indivíduos. Alguns se inclinam, de preferência, para a audição, outros para a visão. Há alunos que absorvem tudo o que os professores exponham na sala de aula, tirando boas notas sem precisarem estudar em casa. E há aqueles que, incapazes de se concentrar na escola, compensam tal deficiência por meio da leitura solitária. Os primeiros têm boas chances de, adultos, transformarem-se eles mesmos em professores, enquanto os demais optarão por escrever. E, se bem que sugeri-lo transgrida os limites da correção política, as evidências casuais indicam que as mulheres seriam melhores ouvintes e os homens, leitores melhores.
Existe, afinal, um elemento de voyeurismo (galicismo derivado de "voir", isto é, "ver") na leitura que, para um leitor compulsivo, contamina qualquer texto com certo caráter erótico ou, quem sabe, silenciosamente auto-erótico. Tal erotismo é sobretudo (mas não exclusivamente) masculino. Não obstante contradizer ou relativizar o dogma de acordo com o qual as mulheres passaram a história desempenhando o papel de vítimas perpétuas, esse palpite talvez contribua para elucidar as razões que as levaram, por séculos e séculos, a se envolver menos do que os homens na literatura.


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