|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
A invenção do silêncio
Por mais ruidoso que o mundo contemporâneo soe, é lícito pensar que o silêncio seja recente
|
"EU GOSTO de olhar" é o bordão que o jardineiro oligofrênico Chance/
Chauncy (Peter Sellers) repete a toda hora em "Muito Além do Jardim"
("Being There", 1979). "To watch", o
verbo original, tem, no entanto,
muito mais acepções em inglês:
"ver", "assistir a", "observar" etc. É
graças a essa multiplicidade de sentidos que cada qual de seus interlocutores interpreta a lacônica (e nada
enigmática) frase de maneira diferente, dando-lhe em geral o significado que ele ou ela prefere (o que
combina com o nome do protagonista que se traduz como "acaso").
Olhar, nessas circunstâncias, equivale menos a ver neutralmente do
que a interpretar quanto os olhos, de
acordo com seu ponto de vista, percebam.
A interpretação visual é uma habilidade inata de nossa espécie. Nem é
difícil imaginar contextos nos quais
interpretar adequadamente o visto,
ou seja, mais do que vendo algo delimitado, mostrar-se apto a associá-lo
com outras tantas coisas não presentes nem vistas, torne-se vital. Ligar os rastros encontrados na selva
ao bicho certo pode ser, para um caçador, a diferença entre se alimentar
e terminar como alimento. Num tipo distinto de caça, é decifrar corretamente os sinais enviados pela presa ou pelo caçador que determina o
desfecho da noite, do mês ou, no
pior dos casos, dos anos seguintes.
As formas de olhar descritas acima constituem, sem dúvida, uma espécie de leitura ou, antes, o pressuposto mental da leitura propriamente dita. Borrões de tinta que, numa página, nada dizem ao iletrado
são, para um leitor qualquer, mensagens claramente inteligíveis. Vale
dizer: não é necessário que existisse
um gene da escrita para que nossa
espécie estivesse predisposta a inventá-la. Sabemos que, vinte milênios antes de esta comprovadamente surgir, nossos ancestrais já dominavam a figuração e desenhavam
tanto animais como seres humanos
esquemáticos em superfícies bidimensionais.
O momento crucial teria ocorrido
quando, à aptidão de interpretar (e
criar) sinais, o homem associou sua
capacidade de se comunicar através
de sons encadeados e articulados. O
encontro de ambas foi o grande salto, pois, malgrado o que se pense a
respeito dos ideogramas (que não se
comunicam direta nem independentemente), a escrita só se realiza
de fato quando se liga à linguagem
falada. (Paralelamente, embora bem
mais tarde, a complexidade musical
do Ocidente decorreu da descoberta
de que os sons eram visivelmente
codificáveis.)
Uma comédia africana bem fundamentada na antropologia, "Os
Deuses Devem Estar Loucos" ("The
Gods Must Be Crazy"; primeira parte 1980, segunda parte 1989), sobre
os boxímanes do deserto do Kalahari, mostra-nos quão loquazes eram
os membros das culturas anteriores
à invenção da escrita. A impressão
que o filme dá é a de que os povos tribais, viciados no som da própria voz,
paravam de falar apenas para dormir, se é que não falavam também
durante o sono. Por mais ruidoso
que o mundo contemporâneo soe, é
lícito pensar que o silêncio seja uma
invenção recente ou moderna, uma
disciplina, aliás, que requer supervisão e admoestações constantes.
Por estranho que pareça, as capacidades de apreender com olhos e
com ouvidos mantêm-se mais ou
menos separadas na mente e não se
distribuem igualmente entre os indivíduos. Alguns se inclinam, de
preferência, para a audição, outros
para a visão. Há alunos que absorvem tudo o que os professores exponham na sala de aula, tirando boas
notas sem precisarem estudar em
casa. E há aqueles que, incapazes de
se concentrar na escola, compensam tal deficiência por meio da leitura solitária. Os primeiros têm boas
chances de, adultos, transformarem-se eles mesmos em professores, enquanto os demais optarão por
escrever. E, se bem que sugeri-lo
transgrida os limites da correção política, as evidências casuais indicam
que as mulheres seriam melhores
ouvintes e os homens, leitores melhores.
Existe, afinal, um elemento de voyeurismo (galicismo derivado de
"voir", isto é, "ver") na leitura que,
para um leitor compulsivo, contamina qualquer texto com certo caráter erótico ou, quem sabe, silenciosamente auto-erótico. Tal erotismo
é sobretudo (mas não exclusivamente) masculino. Não obstante
contradizer ou relativizar o dogma
de acordo com o qual as mulheres
passaram a história desempenhando o papel de vítimas perpétuas, esse
palpite talvez contribua para elucidar as razões que as levaram, por séculos e séculos, a se envolver menos
do que os homens na literatura.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Atuação de performers é destacada em mostra Índice
|