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CINEMA/ESTREIAS
Festa de gols
Documentário "Zico na Rede" troca biografia pela euforia e exibe alguns dos 831 gols em 23 anos de carreira nacional e internacional do jogador, muitos nunca vistos por aqui
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
O gol como obra de arte
-como a consumação
de um projeto coletivo
ou de uma explosão individual.
A anatomia do gol -como os
croquis de Da Vinci para os objetos que imaginava ou os de
Eisenstein e Hitchcock para
seus filmes. A engenharia do
gol -um esforço de cérebro, fôlego, músculos e vontade, algo a
ser estudado pelos profissionais da autoajuda. E, por fim, a
euforia do gol -que Zico não
concorda que se compare a um
orgasmo, mas ele não pode impedir que o torcedor experimente uma sensação parecida,
de excitação extrema e alívio
redentor a cada bola que seu time manda para as redes.
Eu sei, as comparações acima
são balofas e repolhudas. Mas
não resisti a formulá-las diante
do prazer até orgasmático, com
a duração quase imoral de uma
hora, provocado pelo documentário de Paulo Roscio, "Zico na Rede", que entra nesta
sexta-feira em cartaz no cinema Odeon, no Rio, e no Reserva
Cultural, em São Paulo, antes
de chegar a outras capitais e
sair em DVD no fim de julho.
O filme mostra algumas dezenas dos 831 gols do cidadão
Arthur Antunes Coimbra, Zico,
em 23 anos de carreira como jogador do Flamengo, da Seleção
Brasileira, do italiano Udinese
e dos japoneses Sumitomo e
Kashima -muitos nunca vistos
por aqui, num trabalho de pesquisa que levou mais de um ano
e só foi possível pelo patrocínio
da Eletrobras.
O filme não tem nada de biográfico -nada de "nasceu em
Quintino, pegava o trem todo
dia para treinar, fez e aconteceu no futebol e tem hoje duas
estátuas em Tóquio". E nenhuma referência ao chute no joelho que quase encerrou sua carreira, em 1985, ao esforço que
fez para voltar ao futebol e ao
pênalti perdido contra a França, poucos meses depois.
Ainda bem. Tudo isso é carne de vaca
e já foi contado nos cinco livros
publicados até agora sobre Zico
e em vídeos sobre o profissional, o craque e o homem.
O título, "Zico na Rede", diz
exatamente a que esse documentário se propõe. É uma festa de gols, todos antecedidos de
falas curtas e objetivas do próprio Zico e de colegas como Junior, Adílio, Raul, Edinho ou o
folclórico Peu, explicando a gênese de cada gol e seus graus de
dificuldade ou originalidade.
À sua maneira despretensiosa, o filme promove o gol à categoria de ciência.
Inocente molecagem
Há gols de bola parada, em
movimento, de pé esquerdo
(sendo Zico destro), de cabeça,
de joelho e até de bunda. Há o
gol em que a bola quicou na grama irregular e Zico, que se preparava para chutar rasteiro,
deu um balãozinho mortal sobre o goleiro, e aquele em que,
ao contrário, a bola se atrasou e,
na mesma passada, ele teve de
puxá-la com o lado do pé antes
de bater de primeira.
Há um outro, ainda mais impressionante, em que foi Zico
quem passou da bola, mas salvou a jogada mergulhando para
frente e fazendo o gol de calcanhar -para ele, o mais bonito
de sua carreira, e marcado no
Japão.
Gols de arrancada com a bola
dominada, de área a área, e entrando pela defesa adversária
sem apelação, como os que Kaká costuma fazer, há inúmeros
-só que as arrancadas de Zico
eram ainda mais rápidas. E
constata-se que os gols que pareciam de oportunismo, como
os nascidos em rebatidas do goleiro ou da zaga, só surgiram
pelo seu senso de colocação e
de antevisão das jogadas.
Os gols em cobrança de faltas
têm um capítulo especial. Zico
praticava todos os estilos
-com a bola colocada, de curva
ou com força-, mas o principal
é que, ao chutar, já analisara o
estilo do goleiro. Outro macete
era o de, em jogadas na grande
área congestionada, usar como
referência a toalha ou a bolsinha que os goleiros costumam
pendurar na rede ou guardar
dentro do gol -e não foram
poucas as vezes em que Zico fuzilou a toalha ou a bolsa.
(Na pré-estreia do filme, na semana
passada, no Rio, esses foram os
gols campeões de aplausos.)
Aliás, o goleiro mais vazado no
filme é Leão, pelo Palmeiras,
Vasco ou Grêmio.
Com toda sua lucidez sobre a
ciência do gol, Zico nunca se
furtou também a uma pequena
superstição. Bem jovem, ele
descobriu que nem por brincadeira os goleiros gostam de ver
a bola entrando na meta. Com
isso, sempre que o gol estava difícil de sair, Zico não perdia a
chance de mandar para as redes uma bola fora de jogo e que
estivesse ao seu alcance na área
-uma inocente molecagem,
que às vezes lhe custava um
cartão amarelo.
Mas era para
"ensinar à bola o caminho do
gol". E, por acaso ou não, ela
aprendia muito bem o caminho
que, às vezes, levava à goleada.
ZICO NA REDE
Direção: Paulo Roscio
Produção: Brasil, 2009
Onde: estreia no Reserva Cultural
Classificação: livre
Avaliação: ótimo
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