São Paulo, sexta, 3 de julho de 1998

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CINEMA - REESTRÉIA
"Guarda-Chuvas" abriga encanto e horror

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Apesar das aparências, "Os Guarda-Chuvas do Amor" não é um filme simples. Sob a capa do musical, do "inteiramente cantado", existe um trabalho complexo e talvez único.
Ele consiste em pôr em relevo, a um só tempo, o encanto e o horror dos contos de fada. Jacques Demy (1931-1990) abordaria o conto de fadas diretamente em "Pele de Asno", mas seu "Guarda-Chuvas" tem a estranha virtude de misturar o trivial e o mitológico, o cotidiano e o extraordinário.
O que pode ser mais banal do que uma garota (Catherine Deneuve) que se apaixona por um rapaz pobre (Nino Castelnuovo) e cuja mãe se opõe ao romance? O que pode ser mais extraordinário do que esses amores juvenis? São acontecimentos banais e únicos, porque marcam cada existência.
Assim, não é de espantar que a ficção de "Os Guarda-Chuvas" lembre a desenvolvida por Elia Kazan em "Clamor do Sexo". O tom desses dois grandes filmes, sim, é bem diferente.
Enquanto Kazan investe no realismo, Demy trabalha a fantasia. Mas, como assinalou Jean Douchet, não é na noção de fantástico que evolui esse trabalho, mas na de encantamento. Daí a cenografia e os figurinos serem aspectos centrais. As combinações de cores, à parte serem deslumbrantes, dialogam com os personagens, como se devessem exprimir aquilo que sentem tanto quanto as palavras.
Além disso, essas combinações nos fazem lembrar (à parte o canto) que estamos em um espetáculo que não procura imitar a realidade, mas descolar-se dela.
Da mesma forma, os movimentos de câmera, elegantíssimos, vasculham as feições dos atores e as casas, executando seu próprio bailado (no lugar dos personagens, que não dançam). Mesmo a beleza de Deneuve, então com menos de 20 anos, tem um quê de irreal (que, aliás, perdura até hoje), como se não pudesse ser tocada.
Com tudo isso, Demy desenvolve um jogo particular, inimitável, em que a delicadeza dos sentimentos iguala-se à da mise-en-scène e à da própria ficção, em que se desenvolve o bailado, em que se defrontam paixão e razão, prazer e reflexão, juventude e maturidade.
Não é de estranhar que Catherine Deneuve tenha visto o filme como "um conto ao mesmo tempo poético e cruel". Porque a passagem da juventude à maturidade supõe uma larga faixa de melancolia: um jogo de perdas e ganhos no qual a determinação conta muito pouco. Existe uma fatalidade na passagem do tempo à qual nenhum homem saberia resistir.
Em "Clamor do Sexo", Kazan enfatizava a melancolia e as perdas, ao final, enquanto Demy chama a atenção para elas sobretudo no pré-clímax do filme.
Fiel às suas origens gregas, Kazan chamava a atenção para o que existe de trágico no correr do tempo. Mais francês, Demy desenvolve a idéia de ciclos de vida e faz desfilar as quatro estações do ano, assim como evidencia os contrastes entre a noite e o dia (isso não o impede de, na cena final, colocar todas essas forças em fricção: ela se dá no inverno, mas no Natal; à noite, mas sob a neve; é alegre e triste, a um só tempo).
Inútil, por fim, falar sobre a cópia que chega ao Brasil, graças ao restauro promovido por Agnès Varda -cineasta e viúva de Demy: sua beleza está perfeitamente à altura do filme.

Filme: Os Guarda-Chuvas do Amor Produção: França, 1963 Direção: Jacques Demy Com: Catherine Deneuve, Nino Castelnuovo Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema - sala 1


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