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CINEMA - REESTRÉIA
"Guarda-Chuvas" abriga encanto e horror
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Apesar das aparências, "Os
Guarda-Chuvas do Amor" não é
um filme simples. Sob a capa do
musical, do "inteiramente cantado", existe um trabalho complexo
e talvez único.
Ele consiste em pôr em relevo, a
um só tempo, o encanto e o horror
dos contos de fada. Jacques Demy
(1931-1990) abordaria o conto de
fadas diretamente em "Pele de
Asno", mas seu "Guarda-Chuvas" tem a estranha virtude de
misturar o trivial e o mitológico, o
cotidiano e o extraordinário.
O que pode ser mais banal do
que uma garota (Catherine Deneuve) que se apaixona por um rapaz pobre (Nino Castelnuovo) e
cuja mãe se opõe ao romance? O
que pode ser mais extraordinário
do que esses amores juvenis? São
acontecimentos banais e únicos,
porque marcam cada existência.
Assim, não é de espantar que a
ficção de "Os Guarda-Chuvas"
lembre a desenvolvida por Elia
Kazan em "Clamor do Sexo". O
tom desses dois grandes filmes,
sim, é bem diferente.
Enquanto Kazan investe no realismo, Demy trabalha a fantasia.
Mas, como assinalou Jean Douchet, não é na noção de fantástico
que evolui esse trabalho, mas na
de encantamento. Daí a cenografia
e os figurinos serem aspectos centrais. As combinações de cores, à
parte serem deslumbrantes, dialogam com os personagens, como se
devessem exprimir aquilo que
sentem tanto quanto as palavras.
Além disso, essas combinações
nos fazem lembrar (à parte o canto) que estamos em um espetáculo
que não procura imitar a realidade, mas descolar-se dela.
Da mesma forma, os movimentos de câmera, elegantíssimos,
vasculham as feições dos atores e
as casas, executando seu próprio
bailado (no lugar dos personagens, que não dançam). Mesmo a
beleza de Deneuve, então com menos de 20 anos, tem um quê de irreal (que, aliás, perdura até hoje),
como se não pudesse ser tocada.
Com tudo isso, Demy desenvolve um jogo particular, inimitável,
em que a delicadeza dos sentimentos iguala-se à da mise-en-scène e
à da própria ficção, em que se desenvolve o bailado, em que se defrontam paixão e razão, prazer e
reflexão, juventude e maturidade.
Não é de estranhar que Catherine Deneuve tenha visto o filme como "um conto ao mesmo tempo
poético e cruel". Porque a passagem da juventude à maturidade
supõe uma larga faixa de melancolia: um jogo de perdas e ganhos no
qual a determinação conta muito
pouco. Existe uma fatalidade na
passagem do tempo à qual nenhum homem saberia resistir.
Em "Clamor do Sexo", Kazan
enfatizava a melancolia e as perdas, ao final, enquanto Demy chama a atenção para elas sobretudo
no pré-clímax do filme.
Fiel às suas origens gregas, Kazan chamava a atenção para o que
existe de trágico no correr do tempo. Mais francês, Demy desenvolve a idéia de ciclos de vida e faz
desfilar as quatro estações do ano,
assim como evidencia os contrastes entre a noite e o dia (isso não o
impede de, na cena final, colocar
todas essas forças em fricção: ela
se dá no inverno, mas no Natal; à
noite, mas sob a neve; é alegre e
triste, a um só tempo).
Inútil, por fim, falar sobre a cópia que chega ao Brasil, graças ao
restauro promovido por Agnès
Varda -cineasta e viúva de
Demy: sua beleza está perfeitamente à altura do filme.
Filme: Os Guarda-Chuvas do Amor
Produção: França, 1963
Direção: Jacques Demy
Com: Catherine Deneuve, Nino
Castelnuovo
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco de Cinema - sala 1
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