São Paulo, Sábado, 03 de Julho de 1999
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O VELHO E OS LOBOS
Os laços de "Cora" nas linhas de Julia Kristeva

REGIS BONVICINO
especial para a Folha

Julia Kristeva, psicanalista de profissão, é uma pensadora que conseguiu reunir, em suas reflexões, a linguística, a semiótica, a filosofia e a psicanálise.
Seu livro "Soleil Noir" ("Sol Negro/Melancolia e Depressão"), de 87, é conhecido no Brasil. Nascida em 41, na Bulgária, mudou-se para Paris em 65, onde se filiou ao grupo da revista "Tel Quel".
"O Velho e os Lobos", publicado em 91 e agora lançado no Brasil pela Rocco (R$ 20, 164 págs.), é obra de ficção, na qual, creio, Kristeva tenta traduzir, para a prática, questões que se propôs e respondeu em teoria. Entre elas, a de captar os "estados de instabilidade" do sujeito, na linguagem, para além de dualismos (masculino/feminino) ou das normas de convivência, que o reduzem ao mecânico.
Ela representa, portanto, uma das estratégias para definir ser e arte, no mundo pós-estruturalista, ao reintroduzir o "físico" (e seus fluxos e processos) no centro do pensamento analítico e linguístico, por meio do que designa "Cora" (expressão tomada de Platão), chamando a atenção para os laços antigos do ser com o corpo da mãe, onde, em tais laços, "identifica" a possibilidade da poesia.
Kristeva foi buscar "inspiração" no romance policial ("noir") para tramar seus personagens, entre eles o velho Septicius Clarus. E também promover violenta crítica ao mundo da "televisão", em Santa Bárbara (aqui, em virtude do conceito de "barbárie").
Embora um tanto esquemático, "O Velho ...", quase um ensaio livre, traz à tona pontos interessantes como o de, até hoje, o romance policial ser considerado pelo cânone francês como algo "menor", ao lado da "literatura de imigração".
Trata-se, portanto, de escolha ideológica, a de Julia Kristeva, procurando explorar o universo da "métissage" e da "créolisation" e o aproximando do mundo dos laços antigos do ser com o corpo da mãe.
Deste modo, pode-se entender porque no meio do livro ela escreve: "Assim pode começar a narrativa do Velho e dos lobos, concebida de longe por um observador anônimo e oculto, que não é outro senão o autor dissimulado da aventura" ou então sentenças como "...o ódio encurva-se nas mulheres como um útero".
Sim, pois Cora (os antigos laços do ser com o corpo da mãe) é, para Kristeva,o único útero legítimo. Kristeva foi, ao lado de Jacques Lacan, Jean Baudrillard e outros, objeto de "desconstrução" recente por parte de Alan Sokal e Jean Bricmont que, numa revista de "estudos culturais" norte-americana, publicaram artigo no qual procuram mostrar como tais intelectuais "abusaram de terminologia e conceitos científicos, fora do seu contexto e sem a mínima justificação". Esta ressalva poderia ser feita ao romance "O Velho e os Lobos", mas não vale a pena diante de um mundo cada vez mais destituído de pensadores.


Avaliação:    

Régis Bonvicino é poeta, autor de "O Filho de Sêmele" (ed. Tigre no Espelho, 1999) e "Ossos de Borboleta" (ed. 34, 1996), entre outros.

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