São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

ESPANHA

"Soldados de Salamina", do catalão Javier Cercas, narra desventuras de fascista salvo da morte por republicanos

Obra relativiza heroísmos da guerra civil

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

A história de um escritor e militante fascista é um dos grandes sucessos editoriais na Espanha. Pródiga em exaltar o heroísmo de milicianos e poetas republicanos que lutaram contra o franquismo, a memória da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) parece, aos poucos, estar sendo revista por uma nova geração literária.
"Até bem pouco tempo, seria impossível escrever sobre um fascista e não ser considerado um. Também não conseguiria convencer ninguém de que uma péssima pessoa pode ter sido um grande artista", diz o catalão Javier Cercas, 40, autor de "Soldados de Salamina", que é lançado agora no Brasil depois de vender 300 mil exemplares na Espanha, onde se encontra já na 22ª edição.
"Soldados de Salamina" centra sua narrativa na história de Rafael Sánchez Mazas (1894-1966), escritor madrileno que, depois de viver um período em Roma, volta à Espanha com a idéia de formar um grupo fascista.
Com alguns amigos, funda a Falange, organização paramilitar que auxiliou a tomada do poder pelo general Francisco Franco. Depois de derrubada a república e instalada a ditadura, a Falange se transformou em único partido legal e forneceu a Franco a ideologia de que este se apropriaria. Sánchez Mazas era um dos ideólogos mais importantes desse grupo e chegou a ser ministro.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Gerona, Javier Cercas explicou porque decidiu contar a história de Sánchez Mazas. "Por ter tido um papel político tão importante numa das fases mais radicais do franquismo, Sánchez Mazas é, para a memória coletiva, um monstro. Quis entender como o monstro foi criado e como um fascista podia ser, também, um bom escritor." Sánchez Mazas fez romances, ensaios, textos para teatro e artigos para jornais.

Salvo por milagre
O autor parte de uma sequência de episódios quase mágicos da vida de Sánchez Mazas. Preso por republicanos em Barcelona, ele é levado com outros prisioneiros fascistas até um bosque. O grupo é fuzilado, mas, miraculosamente, Sánchez Mazas foge e esconde-se no mato. Um soldado republicano o encontra, aponta-lhe a arma, mas decide poupá-lo, para a incredulidade da vítima. Sánchez Mazas passa dias abrigado entre as árvores, onde também conta com a ajuda e proteção de três desertores republicanos, a quem chama de "amigos do bosque".
Durante toda sua vida, Sánches Mazas seria grato a eles. Anos depois, já ministro de Franco, ofereceria ajuda e salvaria um deles do cárcere a que eram condenados os oposicionistas do regime.
Por meio da reconstrução, em tom de aventura, desses fatos incríveis da vida de Sánchez Mazas, Cercas promove uma reflexão sobre o que foi o falangismo e sobre as transformações da memória coletiva ao longo dos mais de 60 anos que separam a Espanha atual daquela que rachou em dois durante a guerra.
Cercas chama seu livro de "narrativa real". Na verdade, trata-se de uma grande reportagem relatada, porém, por um jornalista fictício. "Tudo o que digo sobre Sánchez Mazas é real e está documentado. A única coisa que está romanceada é a minha busca pela sua história, ou seja, o papel do narrador", diz o autor.

Revisão
O jornalista do livro revê sua visão da Guerra Civil, e isso corresponde a uma mudança de opinião do próprio Cercas e de muitos de seus contemporâneos. "Para a minha geração, a guerra sempre foi algo remoto e chato, um assunto dos nossos pais e avós. Julgávamo-nos modernos, europeus, hoje desejamos viver na Espanha de Pedro Almodóvar."
Cercas cresceu no período chamado de "transição", em que a ditadura deu lugar à democracia. "O discurso naquela época era que tínhamos de esquecer os fuzilamentos, as torturas e a ditadura, apagar as diferenças, firmar um pacto social e olhar para a frente. Sempre fui contra isso, porque era uma mentira, não se podia igualar os dois lados. Hoje, entretanto, preciso reconhecer que aquilo tudo trouxe algo positivo, somos um país europeu e democrático, ainda que tenhamos pagado o preço do esquecimento e de viver de meias-verdades."
Para ele, agora é o momento de reescrever a história. "O tempo passou, hoje temos distanciamento suficiente para ver as coisas de modo mais claro. O que não significa sermos neutros. Há coisas que não se pode mudar. Houve um golpe, um governo totalitário no poder, muitas mortes injustas e muitos heróis esquecidos que tentaram lutar pela liberdade."
A imagem mais tradicional que se tem da Guerra Civil Espanhola é a de um bando de poetas e milicianos românticos enfrentando com armas e versos o fascismo. Cercas acredita que seja o momento de enterrar de vez essa idéia. "É uma grande mentira. Não havia só poetas e inocentes do lado dos republicanos, o fato de eu narrar um fuzilamento em massa promovido por eles é um bom exemplo disso", diz.
Por outro lado, entre os fascistas, também havia muitos intelectuais. "A literatura tem muita afinidade com o fascismo, pois este não é nada mais do que um idealismo. Seu ideal é o de reconstruir um Paraíso perdido, que remonta a um estado de segurança, ao Antigo Regime, às hierarquias, à força do Estado e da religião. A vida democrática parecia aos fascistas complexa, sem claridade. O fascismo era a solução para afastar tanto a revolução socialista como a insegurança da democracia."
Para ele, a Espanha de hoje ainda é tributária do conflito. "Os falangistas, por exemplo, se afastaram de Franco depois da Segunda Guerra. Seu discurso se esvaziou, muitos foram para a oposição, foram presos ou viraram social-democratas. De alguma forma, ainda são personagens políticos na Espanha. Nós, espanhóis, somos, individual e coletivamente, em nossos traumas e em nossas opções políticas, fruto do que se passou naqueles anos."


SOLDADOS DE SALAMINA - de: Javier Cercas. Editora: Globo (São Paulo, 2002). Quanto: R$ 29 (241 págs.).


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