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LIVROS/LANÇAMENTOS
ESPANHA
"Soldados de Salamina", do catalão Javier Cercas, narra desventuras de fascista salvo da morte por republicanos
Obra relativiza heroísmos da guerra civil
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
A história de um escritor e militante fascista é um dos grandes
sucessos editoriais na Espanha.
Pródiga em exaltar o heroísmo de
milicianos e poetas republicanos
que lutaram contra o franquismo,
a memória da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) parece, aos
poucos, estar sendo revista por
uma nova geração literária.
"Até bem pouco tempo, seria
impossível escrever sobre um fascista e não ser considerado um.
Também não conseguiria convencer ninguém de que uma péssima pessoa pode ter sido um
grande artista", diz o catalão Javier Cercas, 40, autor de "Soldados de Salamina", que é lançado
agora no Brasil depois de vender
300 mil exemplares na Espanha,
onde se encontra já na 22ª edição.
"Soldados de Salamina" centra
sua narrativa na história de Rafael
Sánchez Mazas (1894-1966), escritor madrileno que, depois de viver um período em Roma, volta à
Espanha com a idéia de formar
um grupo fascista.
Com alguns amigos, funda a Falange, organização paramilitar
que auxiliou a tomada do poder
pelo general Francisco Franco.
Depois de derrubada a república e
instalada a ditadura, a Falange se
transformou em único partido legal e forneceu a Franco a ideologia de que este se apropriaria.
Sánchez Mazas era um dos ideólogos mais importantes desse
grupo e chegou a ser ministro.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Gerona, Javier Cercas explicou porque decidiu contar a
história de Sánchez Mazas. "Por
ter tido um papel político tão importante numa das fases mais radicais do franquismo, Sánchez
Mazas é, para a memória coletiva,
um monstro. Quis entender como o monstro foi criado e como
um fascista podia ser, também,
um bom escritor." Sánchez Mazas
fez romances, ensaios, textos para
teatro e artigos para jornais.
Salvo por milagre
O autor parte de uma sequência
de episódios quase mágicos da vida de Sánchez Mazas. Preso por
republicanos em Barcelona, ele é
levado com outros prisioneiros
fascistas até um bosque. O grupo
é fuzilado, mas, miraculosamente, Sánchez Mazas foge e esconde-se no mato. Um soldado republicano o encontra, aponta-lhe a arma, mas decide poupá-lo, para a
incredulidade da vítima. Sánchez
Mazas passa dias abrigado entre
as árvores, onde também conta
com a ajuda e proteção de três desertores republicanos, a quem
chama de "amigos do bosque".
Durante toda sua vida, Sánches
Mazas seria grato a eles. Anos depois, já ministro de Franco, ofereceria ajuda e salvaria um deles do
cárcere a que eram condenados
os oposicionistas do regime.
Por meio da reconstrução, em
tom de aventura, desses fatos incríveis da vida de Sánchez Mazas,
Cercas promove uma reflexão sobre o que foi o falangismo e sobre
as transformações da memória
coletiva ao longo dos mais de 60
anos que separam a Espanha
atual daquela que rachou em dois
durante a guerra.
Cercas chama seu livro de "narrativa real". Na verdade, trata-se
de uma grande reportagem relatada, porém, por um jornalista
fictício. "Tudo o que digo sobre
Sánchez Mazas é real e está documentado. A única coisa que está
romanceada é a minha busca pela
sua história, ou seja, o papel do
narrador", diz o autor.
Revisão
O jornalista do livro revê sua visão da Guerra Civil, e isso corresponde a uma mudança de opinião
do próprio Cercas e de muitos de
seus contemporâneos. "Para a
minha geração, a guerra sempre
foi algo remoto e chato, um assunto dos nossos pais e avós. Julgávamo-nos modernos, europeus, hoje desejamos viver na Espanha de Pedro Almodóvar."
Cercas cresceu no período chamado de "transição", em que a ditadura deu lugar à democracia.
"O discurso naquela época era
que tínhamos de esquecer os fuzilamentos, as torturas e a ditadura,
apagar as diferenças, firmar um
pacto social e olhar para a frente.
Sempre fui contra isso, porque era
uma mentira, não se podia igualar
os dois lados. Hoje, entretanto,
preciso reconhecer que aquilo tudo trouxe algo positivo, somos
um país europeu e democrático,
ainda que tenhamos pagado o
preço do esquecimento e de viver
de meias-verdades."
Para ele, agora é o momento de
reescrever a história. "O tempo
passou, hoje temos distanciamento suficiente para ver as coisas de
modo mais claro. O que não significa sermos neutros. Há coisas
que não se pode mudar. Houve
um golpe, um governo totalitário
no poder, muitas mortes injustas
e muitos heróis esquecidos que
tentaram lutar pela liberdade."
A imagem mais tradicional que
se tem da Guerra Civil Espanhola
é a de um bando de poetas e milicianos românticos enfrentando
com armas e versos o fascismo.
Cercas acredita que seja o momento de enterrar de vez essa
idéia. "É uma grande mentira.
Não havia só poetas e inocentes
do lado dos republicanos, o fato
de eu narrar um fuzilamento em
massa promovido por eles é um
bom exemplo disso", diz.
Por outro lado, entre os fascistas, também havia muitos intelectuais. "A literatura tem muita afinidade com o fascismo, pois este
não é nada mais do que um idealismo. Seu ideal é o de reconstruir
um Paraíso perdido, que remonta
a um estado de segurança, ao Antigo Regime, às hierarquias, à força do Estado e da religião. A vida
democrática parecia aos fascistas
complexa, sem claridade. O fascismo era a solução para afastar
tanto a revolução socialista como
a insegurança da democracia."
Para ele, a Espanha de hoje ainda é tributária do conflito. "Os falangistas, por exemplo, se afastaram de Franco depois da Segunda
Guerra. Seu discurso se esvaziou,
muitos foram para a oposição, foram presos ou viraram social-democratas. De alguma forma, ainda são personagens políticos na
Espanha. Nós, espanhóis, somos,
individual e coletivamente, em
nossos traumas e em nossas opções políticas, fruto do que se passou naqueles anos."
SOLDADOS DE SALAMINA - de: Javier
Cercas. Editora: Globo (São Paulo, 2002).
Quanto: R$ 29 (241 págs.).
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