São Paulo, sexta-feira, 03 de agosto de 2007

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Crítica/"A Comédia do Poder"

Chabrol espelha nossos próprios escândalos em filme sobre a corrupção

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Em vários sentidos, "A Comédia do Poder" é um filme que o cinema brasileiro já deveria ter feito, mas ainda não fez. Tanto pelo tema (corrupção no alto escalão) como pela forma (à altura da complexidade do assunto), o novo longa-metragem de Claude Chabrol apresenta aquilo que mais faz falta em nossa produção cinematográfica atual: independência de olhar, rigor narrativo e uma aguda capacidade de observação social.
Infelizmente, o título em português induz a um erro de recepção. Chabrol não fez uma comédia, e a tradução do original, bem mais fiel à complexidade da proposta, seria "A Embriaguez do Poder". O roteiro é livremente inspirado em um famoso escândalo de corrupção que estourou na França em 1994, conhecido como "L'affaire Elf". Mas Chabrol não está tão interessado no escândalo em si. Prefere concentrar seu ponto de vista no cotidiano da juíza que comandou as investigações, interpretada por sua atriz-fetiche, Isabelle Huppert.
A aparente simplicidade narrativa esconde um apuro de linguagem incomum. Um dos mais prolíficos cineastas da geração da Nouvelle Vague, Chabrol é um hitchcockiano incurável. Em 1957 -antes do monumental livro de entrevistas realizado por Truffaut, portanto-, ele escreveu, ao lado de Eric Rohmer, um livro seminal sobre a obra do mestre do suspense.
O conhecimento profundo do método de Hitchcock, baseado em um total controle sobre a imagem, é utilizado na construção de um universo pessoal, menos estilizado e de aparência mais naturalista. Cada enquadramento, cada movimento de câmera e cada corte tem uma função dramática.
Quase sempre de forma imperceptível, o olhar do espectador é direcionado ou -raramente- confundido (para quem quiser compreender melhor esse estilo, uma dica é assistir ao DVD de "A Teia de Chocolate", em que o diretor dá uma aula de cinema ao comentar cinco seqüências do filme).
O escândalo de corrupção é a matéria-prima para uma observação cirúrgica das relações entre os interesses públicos e privados -nesse aspecto, traçar paralelos com o Brasil é algo inevitável. Como em tantos outros escândalos -o de Renan Calheiros incluído-, o que traz à tona o mar de lama dos favorecimentos políticos e abuso de poder é uma questão privada (as revelações de uma amante insatisfeita). Mas Chabrol consegue o pequeno milagre de evitar as armadilhas do maniqueísmo sem, nunca, perder o senso crítico.
Dos filmes dessa nova fase de Chabrol, iniciada com "Negócios à Parte" (1997), "A Comédia do Poder" é o mais incisivo e bem resolvido. Para nós, cai ainda como uma dupla bomba, pois põe a nu a fragilidade do sistema judiciário e a nossa dificuldade em espelhar nossos próprios escândalos de forma tão incisiva.


A COMÉDIA DO PODER
Direção:
Claude Chabrol
Produção: Alemanha/França, 2006
Com: Isabelle Huppert, François Berléand e Patrick Bruel
Quando: em cartaz nos cines Espaço Unibanco, HSBC Belas Artes e Sala UOL
Avaliação: ótimo


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