São Paulo, sexta-feira, 03 de agosto de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

O momento da verdade

A mulher viu a arma do bandido, em cima da coluna do patamar. Apontou-a para o marido

- O PESADELO acabou. Estamos cercados de mortos... Mas nós sobrevivemos... Agora devemos enfrentar a polícia... Sugiro que combinemos uma história para ser contada...
O médico interrompeu:
- Acho que devemos contar a verdade.
- Toda a verdade?
- Sim - continuou o médico. A polícia vai ouvir todo mundo, separadamente, será impossível inventarmos uma versão para explicar tantas mortes...
- Então, somente a verdade - concluiu.
O mulato que chegara por último e permanecia na sala, volta e meia examinava o cadáver de Naval. Estranhava o corpo furado pelas balas... O outro cadáver era bem menos interessante, um guarda que levara um balaço na testa. E havia ainda dois mortos no quarto dos fundos. Que gente era aquela?
Seria perigoso perguntar isso em voz alta. O melhor era dar o fora, antes que chegasse a polícia. Olhou uma vez mais o corpo de Naval. Reparou que do bolso da calça saía uma arma.
- O camarada estava armado - disse, para se justificar.
Ninguém deu importância ao achado. Ele revirou a arma de um lado para outro, acabou largando-a na coluna do patamar da escada que subia para os quartos. E foi neste momento que sentiu todos os rostos se voltarem. Ele também olhou. Uma mulher surgiu lá em cima, parecia ter acordado há pouco, tinha os olhos idiotas, loucos, de vidro.
- Silvia! - disse Marcelo, no tom mais amistoso possível. - Pode descer, tudo acabou!
- Onde estão os bandidos? - perguntou ela, com voz engrolada.
- Foram embora - respondeu Marcelo - Não sofremos quase nada, só uns arranhões...
Aldo baixou a cabeça. Silvia começou a descer as escadas, lentamente, com dificuldade em manter o equilíbrio. Parou num degrau e procurou Aldo com o olhar. Reparou bem nele. O rapaz sentiu aquele exame. A mãe teria visto a cena lá em cima, os engulhos, a fúria de Naval possuindo o filho. Bem, o bandido ali estava, cortado ao meio, o pau decepado.
Silvia continuou descendo. Marcelo dirigiu-se para a escada, a fim de abraçá-la. A mulher viu a arma do bandido, em cima da coluna do patamar. Apontou-a para o marido.
- Silvia... nós sobrevivemos... fomos perfeitos, veja, estamos inteiros...
Um clarão passou nos olhos de Marcelo. Não sentiu dor. Um gosto de sangue e de terra na garganta.
Silvia disparou outra vez. A bala atravessou a mão de Marcelo, que se estendia para a mulher. Novo disparo, em pleno rosto. Marcelo rodou e caiu, o sangue jorrando da boca, como um vômito. Agora todos olhavam para Silvia. O mulato arrependeu-se de não ter ido embora antes. O médico aproximou-se de Marcelo, fechou-lhe a boca que comprimia, aberta e enorme, a franja do tapete.
Ana Clara aproximou-se de Silvia, segurou-a com carinho, obrigou-a a sentar-se numa poltrona.
Bruna também se aproximou. Segurou a cabeça da mãe. Aldo não se mexeu. De repente, sentiu que tudo aquilo era um absurdo, nada acontecera realmente, em breve todos se levantariam, os mortos se ergueriam, sem cicatrizes -e tudo teria o gosto da véspera, a vida de sempre.
O médico tomou a iniciativa de substituir Marcelo:
- Bem, vamos ou não chamar a polícia? Estamos cansados, à medida que o tempo passa, podemos ter novas surpresas...
Ninguém respondeu. O mulato queria dar o fora. Ana Clara alisou os cabelos de Silvia e disse, sem convicção, sem nenhum sentido:
- Isso passa!
O médico dirigiu-se a Pedro Lamarca:
- Vamos telefonar de sua casa... aqui os aparelhos estão mudos...
Os dois homens atingiram o jardim gramado, onde o sol batia com força. Henrique os acompanhava, os olhos ardendo, sem mais surpresas.
Lamarca indicou o aparelho:
- Use esse aí... anda depressa, preciso descansar...
O médico ia discar quando descobriu que não sabia para onde ligar.
- Chamo a polícia?
Lamarca sentiu preguiça, mesmo assim procurou pensar.
- Ainda não. O meu cunhado... você sabe, está por cima... acho melhor ligar para alguém, antes de chamar a polícia... Podemos abafar o caso...
- Ligo para onde então?
- Veja aí, na agenda. Tem o telefone do prefeito...
- E o que devo dizer?
Lamarca suspirou. Deitou num sofá e respondeu:
- Tudo, menos a verdade.


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