São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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receita radical

Programas sobre alimentação na TV paga adotam tom agressivo e termos como 'saco sem fundo' para se referir a pessoas que sonham com vida saudável

Alvo de séries é "demônio esfomeado"

Estilo agressivo de programas pode gerar mais culpa do que conscientização no espectador, afirma especialista

GNT e Discovery alegam que as produções entretêm e que "tratamento de choque" é para mudar os hábitos não-saudáveis das pessoas


Leo Caobelli/Folha Imagem
A gerente de marketing Cleide Araujo, que diz sentir culpa ao ver as séries sobre saúde na TV

AUDREY FURLANETO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Rosie Tyler tem 31 anos e pesa 101 quilos. Ela pode ter o rosto de um anjo, mas tem o corpo de um demônio esfomeado." Durante a narração, a câmera segue pelas pernas de Rosie, que veste um maiô azul. "E o ponto fraco desse saco sem fundo é o açúcar."
A câmera, então, salta das pernas para sobrevoar 550 suspiros espalhados na sala da casa da moça -o equivalente ao que ela consome em açúcar em um mês. "O consumo dela é colossal. Os estragos estão aparecendo e ela precisa sair do buraco em que se meteu."
É então que surge na tela a nutricionista Gillian McKeith, que tem a missão de tirar Rosie do "buraco" em um dos episódios da série "Você É o que Você Come", que vai ao ar no Brasil pelo GNT. A série é um dos seis programas voltados para alimentação supostamente saudável que o canal exibe (veja quadro ao lado) na faixa das 21h, a chamada "De Bem com a Vida". Os outros são "É Bom pra Você", "Alternativa Saúde", "BemStar", "Acerte seu Relógio Biológico" e o documentário "Adoro Ser Anoréxica".
Séries do gênero também estão no Discovery Home & Health, braço dedicado à saúde e ao bem-estar do canal americano Discovery: "Vida Verde", que estreou neste ano, e "Diet Doctor", exibida desde 2005.
Na maioria dos programas internacionais, não há muita sutileza: prega-se a necessidade de estar em forma, de deixar de ser "um demônio esfomeado", "redondo", ou de aderir a um estilo de vida mais ecologicamente correto.

Piedade e culpa
A seqüência de imagens e os discursos dos apresentadores -convictos, animados e tensos- levam o espectador a sentir "piedade e culpa", na opinião da gerente de marketing Cleide Araújo, 39 anos, "viciada" nas séries. "Fico morrendo de dó e, ao mesmo tempo, tenho culpa. Fico pensando: "Eu não posso deixar minha vida chegar a esse ponto'", diz.
"Tem momentos em que a gente começa a pensar na própria vida: "Eu faço tudo errado! Eu faço tudo errado!'", afirma ela, que parou de ingerir gordura, compra só leite desnatado, toma dois fitoterápicos por dia para "desinchar", caminha todos os dias e, quando chove, corre na esteira de casa.
De todos, o exemplo mais célebre é o britânico "Você É o que Você Come", conhecido por empilhar em mesas, de forma bem desorganizada, tudo o que o se come em uma semana, ou analisar as fezes do "paciente", que, não raro, está constipado e passa por uma colonterapia (lavagem intestinal) gravada e exibida pela série.
"É parte vital no método de tratamento. Preciso ver o cocô para obter uma visão geral do que acontece no organismo deles", disse a nutricionista do programa à Folha, em fevereiro deste ano. Num dos episódios, ela pergunta a um padre acima do peso, rodeado de guloseimas: "Você não gosta de si mesmo, certo?". Em seguida, o padre desanda a chorar -não sem antes ser gravado de cueca com muito zoom na barriga.
Outra espectadora dos programas, a escritora Thalita Rebouças, 33, diz que "adoraria" receber a visita de McKeith. "Adoro aquela mulher. Séria, seca, focada. Sempre muda a vida dos personagens mudando a alimentação. Se não fosse radical, talvez não fosse tão divertido", justifica ela, que faz ioga com personal trainer e pedala de três a quatro vezes por semana. "Há quem me chame de hipocondríaca, mas sou preocupada com a saúde."
Para o psicoterapeuta Ari Rehfeld, supervisor da Clínica de Psicologia da PUC, "Você É o que Você Come" tem como base "o choque que acaba por promover a culpa". "Só se emagrece realmente se houver mudança do hábito alimentar. Agora, mudar hábito é eminentemente via consciência, não via choque-culpa", diz Rehfeld.
Para ele, "[a série] parte de pressupostos, como os padrões de beleza e de vida saudável. Há caricaturização e exagero que favorecem a manutenção disso. Não trabalha com a singularidade, as particularidades das pessoas. É como um trator de terraplanagem".

Anorexia
Já "Adoro Ser Anoréxica", o documentário de título irônico da BBC que acompanha duas inglesas buscando o "estilo de vida da anorexia", é, para Rehfeld, "educativo" e "ajuda a identificar o distúrbio alimentar" -embora, no vídeo, não sejam muito claras as críticas às idéias das garotas.
No GNT, os programas da faixa "De Bem com a Vida" são vistos mais por mulheres (63% da audiência) de 25 a 49 anos. Para a gerente de programação do canal, Christianne Marques, não há radicalismo, nem mesmo na "fúria" da nutricionista McKeith.
"Ela tem essa coisa forte, mas, por outro lado, é muito carinhosa. E é um tratamento de choque. Você tem que mudar um hábito. Nenhuma transformação vem num estalar de dedos", avalia.
No Discovery, essas séries têm a terceira maior audiência do canal. "É o que chamamos de "infotainment': ver TV de maneira leve e ter, ao mesmo tempo, informação", diz André Rossi, gerente de programação do Discovery Networks Brasil.
Sobre a nutricionista Melina Jampolis, que avalia dietas em "Diet Doctor", e seus avisos tensos -como "Massa, pão, batatas? Esqueça! Pa-ra sem-pre!" ou "Sanduíche, salgadinhos de queijo? O que é isso, um almoço pré-escolar?"-, Rossi avalia que o tom "está dentro dos limites do aceitável". "Quando ela é um pouco mais sarcástica, sabe o que está fazendo", diz.

Difícil adesão
A nutricionista da Abeso (Associação Brasileira para Estudos da Obesidade e da Síndrome Metabólica) Mariana Del Bosco questiona outro aspecto: por serem dos EUA, da Inglaterra ou da Austrália, os programas estão distantes da "realidade alimentar" do Brasil. "As escolhas de cardápio não se encaixam às nossas possibilidades", diz.
Del Bosco também vê um viés negativo no estilo radical dos programas: "A obesidade é uma doença crônica e essa agressividade no tom pode dificultar a adesão. Quando o paciente busca ajuda, quer suporte, e não ser ridicularizado, como se a pessoa tivesse falta de caráter e, por isso, não conseguisse seguir a dieta".


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