São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

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Fúria inocente

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Se existe o romance de formação, o filme "Fúria Inocente" ("The Butcher Boy"), de Neil Jordan, pode ser descrito como um "romance de deformação".
Seu protagonista é Francie Brady (Eamonn Owens), um garoto irlandês de 12 anos, no início dos anos 60.
O pai alcoólatra (Stephen Rea), a mãe louca (Aisling O'Sullivan), os vizinhos tacanhos -tudo conspira para estragar sua personalidade e desgraçar sua vida.
Desse ponto de partida, Neil Jordan poderia ter feito um melodrama, uma comédia de humor negro ou uma fábula edificante.
Tentou, em vez disso, uma singular sobreposição de gêneros e obteve como resultado um filme híbrido, irregular e perturbador.
Se em seus grandes dramas políticos -"Traídos pelo Desejo", "Michael Collins"- Jordan enfatizou a emoção, em "The Butcher Boy" ocorre quase o oposto.
Como a emoção aqui é sua matéria básica, o cineasta procurou mantê-la ao máximo sob controle.
Lançou mão, então, de uma série de recursos de distanciamento e reflexão: o humor, a descontinuidade narrativa, a variação dramática, a recusa da catarse.
Seu intuito não era o de fazer o espectador chorar com o drama de Francie (e com isso se apaziguar) nem horrorizar-se com ele, mas apenas conhecê-lo e, talvez, compreendê-lo.
Artimanhas

O início do filme é enganoso. Uma narração retrospectiva, em "off", acompanha imagens da vida de uma cidadezinha irlandesa no início dos anos 60, vistas pelos olhos de um menino.
Tudo leva a esperar uma evocação nostálgica da infância de província.
Aos poucos, entretanto, a violência e a crueldade vão se instalando pelas beiras do quadro, como que sem querer. Mas o tom jocoso e leviano da narração em "off" persiste, criando um estranhamento que reaparecerá no decorrer de todo o filme.
Uma das artimanhas mais bem-sucedidas da narração é a inserção de referências à vida política e cultural do período (Kennedy, a "ameaça comunista", o seriado "O Fugitivo", a ficção científica B) e seu progressivo entrelaçamento, na mente de Francie, com os fatos do dia-a-dia.
Com a alternância de gêneros e atmosferas, Jordan evita tanto a piedade do espectador pelo protagonista quanto a sua condenação -mesmo quando Francie dá um sentido macabro ao título original ("O Menino Açougueiro").
"Fúria Inocente" pode ser lido como uma história sobre lealdade e traição, e nisso se aproxima dos épicos políticos do diretor.
Francie é traído pelo pai, pela cidade, pelo amigo. Tudo o que ele busca, por vias tortas e terríveis, é alguém em quem confiar. Acaba encontrando Nossa Senhora (a cantora Sinead O'Connor), numa visão ao mesmo tempo kitsch, irônica e sublime.
Poucos cineastas, aliás, seriam capazes do prodígio de ambiguidade que é a aparição da Virgem neste filme, a tal ponto que toda interpretação é possível: fingimento, epifania, delírio.
Numa obra que se nega ao sentimentalismo, as cenas mais comoventes chegam tortas e inesperadas.
Numa delas, o pai de Francie vai visitá-lo no reformatório e diz, com esforço, que "nunca um pai amou tanto a um filho". Em "off", o garoto comenta: "Preferia que ele tivesse me espancado".
"The Butcher Boy" é o retrato desse mundo movediço dos afetos, em que muitas vezes um gesto, ou uma palavra, quer dizer o seu oposto.

Filme: Fúria Inocente (The Butcher Boy) Produção: Irlanda, 1997, 111 min Direção: Neil Jordan Com: Eamonn Owens, Aisling O'Sullivan, Stephen Rea, Sinead O'Connor Lançamento: Warner Home Vídeo (011/820-6777)


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