São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

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Biografia de George Eliot é lição de casa bem-feita e tediosa

MARIA RITA KEHL
especial para a Folha

Talvez ela estivesse certa em desautorizar uma biografia sua. "Biografias são uma doença da vida inglesa", dizia. Sabia por experiência própria que o interesse vitoriano pelas vidas de pessoas famosas não passava de curiosidade vulgar pelos aspectos escandalosos da vida alheia.
Mas apesar da ousadia de seu "casamento" ilegal com George Lewes -com quem viveu 24 anos no mais puro modelo de respeitabilidade burguesa- a vida de Marian (Mary Ann) Evans, ou Marian Lewes como queria ser chamada, ou George Eliot como assinava seus romances, ou Marian Cross -quando afinal se casou em 1880, aos 60 anos, com um homem 20 anos mais jovem para viver só mais sete ou oito meses como uma legítima esposa -não daria um livro interessante.
Mesmo assim, este pesado produto de musculação acadêmica escrito por Fredrick Karl, que a Record fez chegar agora ao Brasil, é a terceira biografia de George Eliot (seu primeiro traidor foi o próprio marido, John Cross, depois da morte dela).
Como pede o mercado atual, esta deve ser a mais extensa. São mais de 800 páginas de lição de casa bem-feita e tediosa. Fatos do dia-a-dia; relatos de contabilidade do editor John Blackwood (ela ganhou muito dinheiro com literatura); incontáveis boletins médicos sobre as dores de cabeça de que a maior autora inglesa do século 19 sofria desde a juventude -e tentativas de explicar seus romances à luz de uma espécie de psicologia, segundo a qual cada obra de George Eliot é reveladora de uma suposta relação mal resolvida com seu pai, e a duplicidade dos nomes prova que havia "duas Marians em conflito dentro dela".
Em umas 200 páginas, um escritor faria da vida dela uma boa história. Sua juventude teve alguma turbulência: deixou de acompanhar o pai na igreja quando perdeu a fé religiosa aos 13 anos, mas voltou atrás para evitar escândalos. Cuidou dele mais tarde, até a morte.
Viveu sozinha em Londres, com passagens por Genebra, durante muitos anos, ganhando seu sustento com artigos de crítica literária, principalmente para a "Westminster Magazine", de John Chapman. Apaixonou-se por seu editor -um grande sedutor, ao que parece- e pelo filósofo Herbert Spencer, a quem teve a iniciativa de se propor e suplicar, como nenhuma mulher de sua época ousaria fazer.
Com 34 anos, quando já se considerava uma solteirona frustrada e sem futuro -muito feia, "deliciosamente horrorosa" como a descreveu Henry James- foi viver com George Lewes: um crítico literário inferior a ela, um pesquisador da ciência de seriedade duvidosa, um homem também feíssimo, mas encantador, casado com uma mulher que não parava de ter filhos com o sócio dele, Thornton Hunt.
Se as qualidades intelectuais de Lewes não estavam à altura das de Marian, o apoio e o companheirismo dele foram fundamentais para fazer dela a escritora de obras como "The Mill on the Floss", "Middlemarch", "Daniel Deronda", entre outros dos romances mais representativos da literatura inglesa oitocentista.
Mais do que os fatos de sua vida rotineira, importa saber que George Eliot, uma mulher, foi a voz mais poderosa do século 19 inglês -o século em que a literatura foi feminina, escreveu Chesterton.
Seus romances realizaram a aspiração vitoriana de conseguir figurar ideais de ordem num mundo sem Deus, valores espirituais e éticos numa sociedade que começa a duvidar da religião e harmonia social na primeira nação do mundo a se industrializar, entre os horrores, a miséria e as desigualdades que Marx descreveu no "Capital".
A voz do conservadorismo esclarecido, da nostalgia de um mundo pré-industrial em que os valores da comunidade (cenário de sua ficção) exigiam o sacrifício dos desejos individuais em favor do bem comum.
Mas os romances de Eliot transcendem o próprio conservadorismo em razão da finíssima sensibilidade psicológica da autora e de sua capacidade de observação das mais escondidas motivações humanas.
Alguns leitores suspeitavam que a sensibilidade do "Sr. Eliot" era tipicamente feminina. Mas foi Dickens, na época o escritor mais popular da Inglaterra, quem apostou com segurança que o pseudônimo escondia uma escritora, e escreveu: "Se George Eliot não for uma mulher, então eu sou".
George Eliot foi ousada em sua vida particular, convicta de que sua posição, espiritual e culturalmente elevada, a autorizava a isto. Mas nossa sensibilidade contemporânea tende a antipatizar com suas posições políticas, contrárias a várias reformas sociais da segunda metade do século, temerosa de que as massas "baixassem o nível" geral da sociedade, contrária ao sufrágio feminino sob a alegação de que as mulheres não estavam suficientemente educadas para votar.
Em 1856, alguns meses antes de começar a escrever ficção, Marian Evans publicou uma crítica terrível às escritoras suas contemporâneas, "Silly Novels by Lady Novelists" ("Novelas Bobas por Mocinhas Novelistas") em que se dedicou a exorcizar seus preconceitos contra as mulheres sem cultura que escreviam romances açucarados para leitoras ainda mais ignorantes.
É um texto arrogante, presunçoso. E corajosíssimo: antes de começar a escrever, ela tornara público seu alto padrão de exigência. Sofreu a vida toda com o rigor de sua própria crítica -mas conseguiu produzir uma obra que, embora desigual, conta com alguns romances à altura da pretensão inicial.


Livro: A Voz de um Século
Autor: Fredrick Karl
Lançamento: Record
Quanto: R$ 60 (884 págs.)



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