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Biografia de George Eliot é lição de casa bem-feita e tediosa
MARIA RITA KEHL
especial para a Folha
Talvez ela estivesse certa em desautorizar uma biografia sua.
"Biografias são uma doença da vida inglesa", dizia. Sabia por experiência própria que o interesse vitoriano pelas vidas de pessoas famosas não passava de curiosidade
vulgar pelos aspectos escandalosos da vida alheia.
Mas apesar da ousadia de seu
"casamento" ilegal com George
Lewes -com quem viveu 24 anos
no mais puro modelo de respeitabilidade burguesa- a vida de Marian (Mary Ann) Evans, ou Marian
Lewes como queria ser chamada,
ou George Eliot como assinava
seus romances, ou Marian Cross
-quando afinal se casou em 1880,
aos 60 anos, com um homem 20
anos mais jovem para viver só
mais sete ou oito meses como uma
legítima esposa -não daria um livro interessante.
Mesmo assim, este pesado produto de musculação acadêmica escrito por Fredrick Karl, que a Record fez chegar agora ao Brasil, é a
terceira biografia de George Eliot
(seu primeiro traidor foi o próprio
marido, John Cross, depois da
morte dela).
Como pede o mercado atual, esta deve ser a mais extensa. São
mais de 800 páginas de lição de casa bem-feita e tediosa. Fatos do
dia-a-dia; relatos de contabilidade
do editor John Blackwood (ela ganhou muito dinheiro com literatura); incontáveis boletins médicos sobre as dores de cabeça de
que a maior autora inglesa do século 19 sofria desde a juventude
-e tentativas de explicar seus romances à luz de uma espécie de
psicologia, segundo a qual cada
obra de George Eliot é reveladora
de uma suposta relação mal resolvida com seu pai, e a duplicidade
dos nomes prova que havia "duas
Marians em conflito dentro dela".
Em umas 200 páginas, um escritor faria da vida dela uma boa história. Sua juventude teve alguma
turbulência: deixou de acompanhar o pai na igreja quando perdeu a fé religiosa aos 13 anos, mas
voltou atrás para evitar escândalos. Cuidou dele mais tarde, até a
morte.
Viveu sozinha em Londres, com
passagens por Genebra, durante
muitos anos, ganhando seu sustento com artigos de crítica literária, principalmente para a "Westminster Magazine", de John
Chapman. Apaixonou-se por seu
editor -um grande sedutor, ao
que parece- e pelo filósofo Herbert Spencer, a
quem teve a iniciativa de se propor e suplicar, como nenhuma mulher de
sua época ousaria
fazer.
Com 34 anos,
quando já se considerava uma solteirona frustrada e sem
futuro -muito feia,
"deliciosamente
horrorosa" como a
descreveu Henry James- foi viver com
George Lewes: um
crítico literário inferior a ela, um pesquisador da ciência
de seriedade duvidosa, um homem
também feíssimo,
mas encantador, casado com uma mulher que não parava de ter filhos
com o sócio dele, Thornton Hunt.
Se as qualidades intelectuais de
Lewes não estavam à altura das de
Marian, o apoio e o companheirismo dele foram fundamentais para
fazer dela a escritora de obras como "The Mill on the Floss",
"Middlemarch", "Daniel Deronda", entre outros dos romances mais representativos da literatura inglesa oitocentista.
Mais do que os fatos de sua vida
rotineira, importa saber que George Eliot, uma mulher, foi a voz
mais poderosa do século 19 inglês
-o século em que a literatura foi
feminina, escreveu Chesterton.
Seus romances realizaram a aspiração vitoriana de conseguir figurar ideais de ordem num mundo sem Deus, valores espirituais e
éticos numa sociedade que começa a duvidar da religião e harmonia social na primeira nação do
mundo a se industrializar, entre os
horrores, a miséria e as desigualdades que Marx descreveu no
"Capital".
A voz do conservadorismo esclarecido, da nostalgia de um mundo
pré-industrial em que os valores
da comunidade (cenário de sua
ficção) exigiam o sacrifício dos desejos individuais em favor do bem
comum.
Mas os romances de Eliot transcendem o próprio conservadorismo em razão da finíssima sensibilidade psicológica da autora e de
sua capacidade de observação das
mais escondidas motivações humanas.
Alguns leitores suspeitavam que
a sensibilidade do "Sr. Eliot" era
tipicamente feminina. Mas foi
Dickens, na época o escritor mais
popular da Inglaterra, quem apostou com segurança que o pseudônimo escondia uma escritora, e escreveu: "Se George Eliot não for
uma mulher, então eu sou".
George Eliot foi ousada em sua
vida particular, convicta de que
sua posição, espiritual e culturalmente elevada, a autorizava a isto.
Mas nossa sensibilidade contemporânea tende a antipatizar com
suas posições políticas, contrárias
a várias reformas sociais da segunda metade do século, temerosa de
que as massas "baixassem o nível" geral da sociedade, contrária
ao sufrágio feminino sob a alegação de que as mulheres não estavam suficientemente educadas para votar.
Em 1856, alguns meses antes de
começar a escrever ficção, Marian
Evans publicou uma crítica terrível às escritoras suas contemporâneas, "Silly Novels by Lady Novelists" ("Novelas Bobas por Mocinhas Novelistas") em que se dedicou a exorcizar seus preconceitos
contra as mulheres sem cultura
que escreviam romances açucarados para leitoras ainda mais ignorantes.
É um texto arrogante, presunçoso. E corajosíssimo: antes de começar a escrever, ela tornara público seu alto padrão de exigência.
Sofreu a vida toda com o rigor de
sua própria crítica -mas conseguiu produzir uma obra que, embora desigual, conta com alguns
romances à altura da pretensão
inicial.
Livro: A Voz de um Século
Autor: Fredrick Karl
Lançamento: Record
Quanto: R$ 60 (884 págs.)
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