São Paulo, quarta-feira, 03 de setembro de 2003 |
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vírus do ABSURDO
VALMIR SANTOS DA REPORTAGEM LOCAL Depois dos recentes Nicky Silver ("Os Solitários") e Paula Vogel ("Como Eu Aprendi a Dirigir um Carro"), o diretor Felipe Hirsch introduz mais um nome da dramaturgia norte-americana contemporânea: Will Eno, autor de "A Temporada de Gripe" ("The Flu Season"). O espetáculo chega ao Brasil apenas seis meses depois da estréia mundial no Gate Theatre, em Londres. Eno, 38, está em São Paulo para acompanhar a montagem que entra em cartaz no próximo dia 12, no Teatro Popular do Sesi. Nascido em Lowell, Massachusetts, o bem-humorado rapaz de falas pausadas, que busca o horizonte com o olhar em vários momentos da entrevista, se diz surpreso por ser encenado no Brasil, sobretudo de maneira quase simultânea com a Inglaterra. Nos EUA, ele é considerado um dos mais talentosos dramaturgos da cena atual. É elogiado, por exemplo, pelo mais respeitado autor vivo de seu país, Edward Albee, 75 ("A Peça Sobre o Bebê"), uma influência confessa. Outra, que salta já na primeira leitura de "A Temporada de Gripe", é a do irlandês Samuel Beckett (1906-1989), de "Esperando Godot", um dos expoentes do teatro do absurdo, gênero de classificação polêmica que define, em suma, aquilo que não pode ser explicado pela razão. Eno é rigoroso e obsessivo na construção da linguagem, o que implica demoli-la também. A peça é sobre uma história de amor. Pacientes num hospital psiquiátrico, Homem (interpretado por Joelson Medeiros) e Mulher (Maureen Miranda) se conhecem e vivem uma paixão, incentivados pelo Médico (Mario Cezar Camargo) e pela Enfermeira (Maria Alice Vergueiro) -estes possivelmente também teriam vivido um romance antes. Cenas e diálogos são entrecortados por dois narradores, um doce e esperançoso Prólogo (Leonardo Medeiros) e um amargo e cético Epílogo (Lavínia Pannunzio). São personagens que ora esclarecem, dirigindo-se diretamente para o público, ora bagunçam de vez a ação. É aqui que Eno diz a que veio, corroborando a inclinação de Hirsch e da Sutil Cia. de Teatro para a estrutura da narrativa de memória. Ele usurpa tempo e espaço para compartilhar com o espectador o próprio ato da criação literária, ou sua crise. A intenção é provocar um estranhamento que se pretende positivo na recepção do espectador, "aquela gente que fica no escuro e, por causa dela, uma peça precisa ter fim e começo", brinca o dramaturgo, expondo seu sentimento ambíguo pela platéia. Não é presunção, explica. Os textos que escreveu até hoje, invariavelmente, conclamam o espectador à condição de co-autor do que vai pelo palco via olhos, coração e mente. "Espero transmitir vida em cada peça que escrevo, mas não a representação da vida", sustenta. Eno é pouco afeito aos autores que reproduzem em cena o imaginário do assim chamado discurso cotidiano. "Para mim, interessa a deformidade da linguagem do dia-a-dia, até para tentar atingir um novo significado." Quando da primeira montagem de "A Temporada de Gripe", pela inglesa Erica Whyman, em abril, a crítica do jornal "The Guardian" cravou: "Esta é uma peça para nos lembrar que o pôr-do-sol é triste, como a nostalgia parece uma neblina e como vivemos nossas vidas como se estivéssemos em luto por ela." Bolsista da Fundação Edward Albee e do Instituto de Literatura Hawthornden, ambos nos EUA, Eno gosta de contar uma história da adolescência que o guiou para a aventura da dramaturgia. A primeira peça que assistiu, da qual não recorda o nome, tinha uma cena em que os atores se retiravam para a coxia e deixavam lá no centro do palco apenas uma cadeira. A mesma deveria ser movimentada por uma discreta corda. Tão discreta que não conseguiu movê-la. Havia um buraco no meio do palco. Foram mais de dois minutos de tensão, em que o público notava o esforço dissimulado do elenco invisível. Eno luta para que sua escrita teatral ao menos se aproxime daquele instante memorável. Texto Anterior: José Simão Próximo Texto: Trecho Índice |
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