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DRAUZIO VARELLA
A memória da velhice
Preservar a vida é o mais
arraigado dos instintos. Na
evolução das espécies, a seleção
natural cuidou de eliminar os incapazes de defendê-la com unhas
e dentes.
Os seres humanos não constituem exceção, mas, pelo fato de
sermos animais racionais, aceitamos determinados limites para a
duração da existência; mantê-la
a qualquer custo não nos parece
sensato. A perda irreversível da
memória configura uma dessas
situações. Incapazes de lembrar
quem somos e de entender o que
se passa a nossa volta, de que vale
a condição humana?
A perda progressiva de memória associada ao envelhecimento
é característica comum a um conjunto de patologias que a medicina classifica como demências
(termo que nada tem a ver com
loucura), das quais a doença de
Alzheimer é a mais prevalente. A
incidência de quadros demenciais aumenta com a idade: aos
70 anos, já acometem entre 10% e
15% da população; aos 90 anos,
entre 50% e 60%.
As primeiras manifestações da
doença de Alzheimer são insidiosas, caracterizadas por pequenos
lapsos de memória que podem
passar despercebidos durante
anos, até a pessoa esquecer o endereço de casa ou estranhar a fisionomia de um filho.
A revista "Science" acaba de
publicar um artigo que reúne a
informação científica apresentada na Conferência Internacional
sobre Prevenção da Demência,
realizada há dois meses, em Washington.
Ainda na década de 1970, foi
aventada a hipótese de que as atividades intelectuais, ao aumentar
o número e a versatilidade das conexões (sinapses) entre os neurônios, criariam uma espécie de reserva cognitiva passível de ser utilizada na velhice. Em 1977, um
grupo do St. Lukes Medical Center, de Chicago, estudando 642
idosos, demonstrou que cada ano
de escolaridade formal reduziria
o risco de desenvolver Alzheimer
em 17%.
O resultado levou o mesmo centro a acompanhar, a partir de
1995, um grupo de padres e freiras
submetidos periodicamente a
uma bateria de 19 testes de avaliação da capacidade intelectual.
Em 2003, depois de analisar 130
cérebros dos religiosos falecidos,
os autores concluíram que a presença das placas no sistema nervoso, características da doença de
Alzheimer, não guardava relação
com os níveis de escolaridade.
Mas a bateria de testes aplicados
em vida indicava que as habilidades cognitivas eram preservadas
por mais tempo nos religiosos
mais instruídos. Neles, a doença
só se manifestava quando eram
encontradas cinco vezes mais placas do que nos outros.
Com os mesmos objetivos, um
grupo da Universidade de Minnesota conduziu o célebre "Estudo
das Freiras", no qual foram analisados ensaios biográficos que
678 freiras nascidas antes de 1917
haviam escrito ao ser admitidas
no convento, aos 20 anos. As irmãs com menor versatilidade lingüística naquela época desenvolveram Alzheimer mais precocemente e, ao morrerem, seus cérebros exibiam as placas características da enfermidade.
Inquéritos populacionais conduzidos em São Paulo pela Unifesp encontraram maior prevalência de demências entre os
analfabetos e os que não haviam
concluído o primeiro grau. Da
mesma forma, em 109 pares de
gêmeos idênticos matriculados no
Registro Sueco de Gêmeos, nos
quais apenas um dos irmãos desenvolveu demência, o gêmeo
saudável, estatisticamente, havia
estudado mais tempo.
Ao comentar essas pesquisas, o
pesquisador Robert Friedland
concluiu que não apenas a leitura
mas simples passatempos como a
montagem de quebra-cabeças ou
a prática de palavras cruzadas
são atividades capazes de proteger o cérebro. No final, acrescentou que vários trabalhos demonstram que assistir à televisão está
associado ao efeito contrário: aumenta a probabilidade de Alzheimer. Num inquérito conduzido
entre 135 portadores da doença,
comparados a 331 de seus familiares saudáveis, cada hora diária
adicional diante da TV multiplicou o risco de Alzheimer por 1,3.
Vários estudos apresentados na
conferência reforçam a idéia de
que nem só do intelecto vive o cérebro: o exercício físico também é
capaz de torná-lo mais resistente.
Anos atrás, uma avaliação dos
resultados obtidos em 18 pesquisas (meta-análise) envolvendo
mulheres e homens de 55 a 80
anos demonstrou que a vida sedentária aumenta o risco de demência. Desde então, surgiram
vários estudos sobre o tema.
Os mais importantes foram realizados na Universidade da Califórnia, com cerca de 6.000 mulheres com mais de 65 anos, em Harvard, com mais de 18 mil mulheres, e na Universidade Johns Hopkins, com mais de 3.000 participantes de ambos os sexos. Os resultados são inequívocos: quanto
maior o tempo gasto em atividades físicas, como andar (principalmente), mais lento o declínio
da capacidade cognitiva.
Trabalhos experimentais confirmam essa conclusão: o exercício físico melhora o fluxo sangüíneo cerebral através da formação
de novos capilares no córtex
-área essencial para a cognição- e induz a produção de proteínas que estimulam o crescimento e favorecem a formação de
novas conexões entre os neurônios.
Essas pesquisas estão sujeitas a
um viés metodológico: será que a
menor versatilidade lingüística
demonstrada pelas freiras aos 20
anos, a menor dedicação à escolaridade formal e às atividades intelectuais, o maior número de horas passivas na frente da TV e a
pouca disposição para atividades
físicas já não fariam parte de um
conjunto de manifestações extremamente precoces das demências
que irão se instalar na senectude?
Impossível ter certeza, mas vale
a pena acreditar na idéia de que,
através de estímulos intelectuais e
da atividade física, será possível
preservar, na idade avançada, a
experiência e as habilidades cognitivas acumuladas com tanto esforço no decorrer da vida.
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