São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2001

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MÚSICA/CRÍTICA

Erasmo revisa sua obra quase esquecida

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

A noite do sábado foi histórica para a música popular brasileira. Os objetivos eram divulgar o CD "Pra Falar de Amor" e gravar um DVD e um CD ao vivo, que devem sair em janeiro. Mas ali, no DirecTV, Erasmo Carlos acabou promovendo a festa alguns meses atrasada de seus 60 anos e uma grande (e provavelmente inédita) retrospectiva de quase 40 anos de estrada.
Aos 60 e responsável por metade do sucesso de seu parceiro Roberto Carlos, Erasmo parece hoje um homem cansado e não demonstra nenhuma preocupação em camuflar esse dado.
Não tenta encarnar o roqueiro doidão, não pula no palco, não dança, não busca reeditar a rebeldia ingênua do iê-iê-iê. Depois de tomar um gole d'água entre uma canção e outra, observa ironicamente o autor de "Cachaça Mecânica": "Os tempos mudam".
Mais que tudo isso, não simula paixão pelo palco, porque na verdade já não a possui mais mesmo. Deve ser por isso que recebe os aplausos todos com melancolia, sem a febre jovem do desejo de reconhecimento.
Os vários anos de afastamento que viveu até este retorno de 2001 parecem, então, voluntários até certo ponto. Erasmo está ciente do papel que já desempenhou nessa história épica, do rock ao samba, da jovem guarda ao pop, do soul à MPB, da parceria com Roberto Carlos à solidão.
Não tem como esconder que o alcance de sua voz diminuiu muito nos últimos anos, mas isso não significa que ele não saiba que ela é bem colocada, quase sempre afinada, segura por trás da aparente insegurança do gentil grandalhão. Retraído e generoso, desperdiçou o grande intérprete que já foi e que ninguém viu.
Soa anedótico -e uma platéia lotada de ídolos depostos da jovem guarda colabora para essa impressão- quando, no bis, tem de simular a velocidade de outrora e cantar "Eu Sou Terrível" (67), "É Proibido Fumar" (64), bibelôs desse porte. É a parte do show que cumpre de mais mau grado e também a menos convincente.
Talvez autocrítico demais, apresenta poucas canções de seu novo CD: "Seu Bicho de Estimação" (aquela em que diz, para quem será?, que "não sou mais seu cão"), "O Impossível" (com participação equivocada de Kiko Zambianchi) e a divertida "Quem Vai Ficar no Gol?". Ah, e "Mais Um na Multidão" (sem Marisa Monte).
Evita as mais confessionais entre as novas canções, como "Ela Conversava com o Olhar" e "A Família". Mas não se exime de citar a ex-mulher, Narinha, ao cantar "De Noite na Cama" (71), que, conta, Caetano Veloso escreveu para ele, do exílio, em Londres.
"De Noite na Cama", levada em arranjo bastante próximo do original, abre o cenário para que Erasmo faça a emocionante revisão de sua tão pouco conhecida obra solo. É nesse bloco que canta, por exemplo, a emocionante "Meu Mar" (72). Talvez o ponto mais alto de todo o show, evidencia que sua melancolia musical não é de hoje, mas sim traço forte de sua compleição musical.
Pouco depois ataca a pretensamente ingênua "Análise Descontraída" (76), que ousa, no pós-11 de setembro de 2001, proclamar que talvez este mundo "precise urgentemente se acabar para começar de novo", ulalá. É evidente o contraste com "Todos Estão Surdos" (71), com que Roberto Carlos vem aí. E Roberto e Erasmo se mantêm opostos complementares, tanto tempo depois.
Lembrando as pungentes -e perdidas- "Cachaça Mecânica" (74) e "Panorama Ecológico" (78), Erasmo deixa só nas entrelinhas uma outra ambição sufocada que talvez em outro tempo fosse dele: o de ser um compositor da verve de Chico Buarque. Ora, se não há tantos erasmos de que "todo mundo se esqueceu", como cantará Roberto...
E não são menos notáveis os erasmos mais conhecidos, que se derramam, amorosos, por sobre as clássicas "Mesmo que Seja Eu" (82) e "Sentado à Beira do Caminho" (70). Antes de cantar tenuemente que "preciso lembrar que eu existo", explica, galhofeiro, que adora ir aos seus próprios shows para poder ouvir sua canção favorita. O prazer, naquele instante, é dele para ele mesmo (sim, Erasmo ainda adora o palco), e o resto são "detalhes tão pequenos". É preciso saber ouvir.


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