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PRÊMIO NOBEL
Trabalho do escritor faz abordagem de questões de seu país por meio de temas existenciais e históricos
Coetzee universaliza as dores da África do Sul
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
É muito difícil - e talvez não
passe de uma discussão bizantina - saber quais os autores
que vão ficar e quais serão destinados ao limbo da História. Se pegarmos a maioria das análises literárias, de qualquer época, os críticos em geral incensam as obras do
passado, em detrimento das que
lhes são contemporâneas. Antes
tínhamos Dante, Rabelais e Shakespeare; depois, Joyce, Kafka e
Proust. E hoje, quem? Arrisquemos: o sul-africano J. M. Coetzee.
Após outro representante das
colônias, escrevendo em língua
inglesa, o trinitário V. S. Naipaul,
ter ganhado o Nobel em 2001, parecia difícil para Coetzee levar a
láurea -e tão cedo. O Nobel de literatura é significativo, embora,
evidentemente não possa ser a
única baliza de excelência artística. Proust nunca ganhou. Yeats,
sim, e Thomas Mann. Da mesma
forma como Frédéric Mistral e
Romain Rolland -mas quem se
lembra destes últimos?
Deixando a pompa e a circunstância de lado e esquecendo um
pouco a afirmação da Academia
de Estocolmo, que elogiou a diversidade da obra de Coetzee, o
que detectamos, de livro a livro, é
uma depuração de estilo. De
"Waiting for the Barbarians" a
"Desonra", de "Vida e Época de
Michael K" a "A Vida dos Animais", vemos uma escrita cada
vez mais enxuta, desornada, precisa. Quase nos permite catar o
homem em seu estado bruto, com
sua perplexidade e suas dores.
Como os seres de Kafka, os personagens de Coetzee percorrem
perplexos o palco da vida, que os
insulta, muitas vezes os fere e os
mata. Eles não procuram compreender, mas sentem que um esforço nessa direção seria necessário. Paradoxalmente, porém,
quem mais participa desse empenho (refletido ou não), mais se vê
apartado do convívio social.
Quando Michael K começa a
aproximar-se do sentido perdido
da vida, passa a ser acossado como rebelde por uns e tratado como lunático por outros. O médico
que cuida dele e tenta sem sucesso
entendê-lo, numa certa altura diz:
"Só você sabe o caminho". Em "A
Vida dos Animais", a relação é
mais complexa, pois o ser a quem
a escritora "alienada" Elizabeth
Costello procura entender foi, no
trajeto da história humana, alijado de sua alma: o animal.
Elizabeth diz que essa atitude
faz a humanidade "cometer um
crime de proporções inimagináveis" contra os animais. Ela se
pergunta se poderia estar fantasiando, mas reflete: "Todo dia vejo provas disso. As próprias pessoas, de quem desconfio, produzem provas, exibem provas para
mim, me oferecem. Cadáveres".
Se no âmbito da equação homem x animal, a barbárie impera,
no que se refere ao relacionamento homem x homem, a situação
não é melhor. A falta de entendimento sobre o outro inspira grandes crimes. Coetzee fala mais da
opressão do negro pelo branco no
regime de apartheid da África do
Sul, mas poderíamos estender as
agressões mútuas a quase qualquer outro conflito da sociedade
atual, ou até às relações pessoais.
Coetzee não apresenta respostas simples. À primeira vista seus
enredos são rigorosamente objetivos, mas o dilema que os anima
produz interpretações multifacetadas. Uma delas, redutora por
certo, sugere que, enquanto não
houver uma busca pelo entendimento do outro -seja ele nosso
pretenso inimigo, os animais ou a
porção oculta de nós mesmos-,
a humanidade será sempre um
projeto malogrado.
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