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São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2003

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PRÊMIO NOBEL

Trabalho do escritor faz abordagem de questões de seu país por meio de temas existenciais e históricos

Coetzee universaliza as dores da África do Sul

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

É muito difícil - e talvez não passe de uma discussão bizantina - saber quais os autores que vão ficar e quais serão destinados ao limbo da História. Se pegarmos a maioria das análises literárias, de qualquer época, os críticos em geral incensam as obras do passado, em detrimento das que lhes são contemporâneas. Antes tínhamos Dante, Rabelais e Shakespeare; depois, Joyce, Kafka e Proust. E hoje, quem? Arrisquemos: o sul-africano J. M. Coetzee.
Após outro representante das colônias, escrevendo em língua inglesa, o trinitário V. S. Naipaul, ter ganhado o Nobel em 2001, parecia difícil para Coetzee levar a láurea -e tão cedo. O Nobel de literatura é significativo, embora, evidentemente não possa ser a única baliza de excelência artística. Proust nunca ganhou. Yeats, sim, e Thomas Mann. Da mesma forma como Frédéric Mistral e Romain Rolland -mas quem se lembra destes últimos?
Deixando a pompa e a circunstância de lado e esquecendo um pouco a afirmação da Academia de Estocolmo, que elogiou a diversidade da obra de Coetzee, o que detectamos, de livro a livro, é uma depuração de estilo. De "Waiting for the Barbarians" a "Desonra", de "Vida e Época de Michael K" a "A Vida dos Animais", vemos uma escrita cada vez mais enxuta, desornada, precisa. Quase nos permite catar o homem em seu estado bruto, com sua perplexidade e suas dores.
Como os seres de Kafka, os personagens de Coetzee percorrem perplexos o palco da vida, que os insulta, muitas vezes os fere e os mata. Eles não procuram compreender, mas sentem que um esforço nessa direção seria necessário. Paradoxalmente, porém, quem mais participa desse empenho (refletido ou não), mais se vê apartado do convívio social.
Quando Michael K começa a aproximar-se do sentido perdido da vida, passa a ser acossado como rebelde por uns e tratado como lunático por outros. O médico que cuida dele e tenta sem sucesso entendê-lo, numa certa altura diz: "Só você sabe o caminho". Em "A Vida dos Animais", a relação é mais complexa, pois o ser a quem a escritora "alienada" Elizabeth Costello procura entender foi, no trajeto da história humana, alijado de sua alma: o animal.
Elizabeth diz que essa atitude faz a humanidade "cometer um crime de proporções inimagináveis" contra os animais. Ela se pergunta se poderia estar fantasiando, mas reflete: "Todo dia vejo provas disso. As próprias pessoas, de quem desconfio, produzem provas, exibem provas para mim, me oferecem. Cadáveres".
Se no âmbito da equação homem x animal, a barbárie impera, no que se refere ao relacionamento homem x homem, a situação não é melhor. A falta de entendimento sobre o outro inspira grandes crimes. Coetzee fala mais da opressão do negro pelo branco no regime de apartheid da África do Sul, mas poderíamos estender as agressões mútuas a quase qualquer outro conflito da sociedade atual, ou até às relações pessoais.
Coetzee não apresenta respostas simples. À primeira vista seus enredos são rigorosamente objetivos, mas o dilema que os anima produz interpretações multifacetadas. Uma delas, redutora por certo, sugere que, enquanto não houver uma busca pelo entendimento do outro -seja ele nosso pretenso inimigo, os animais ou a porção oculta de nós mesmos-, a humanidade será sempre um projeto malogrado.

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