São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

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GASTRONOMIA

Para o chocolatier belga Philippe Vancayseele, os produtos brasileiros feitos de cacau são muito açucarados

Bem-vindo ao reino do chocolate fino!

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

O cacau encontrou um solo fértil no Brasil. Os bons chocolates, porém, continuam pouco enraizados no gosto e na gastronomia do país. Comparados aos europeus, os brasileiros estão ainda na pré-história da produção de qualidade e da degustação requintada do chocolate.
Para ensinar segredos da famosa produção belga, veio ao país na última semana o chocolatier Philippe Vancayseele, conselheiro técnico da Callebaut, uma das maiores fabricantes do mundo.
Vancayseele, 43, deu aulas e fez workshops no evento gastronômico Boa Mesa, ensinando desde a composição química do bom chocolate até maneiras de modelar o produto.
A Folha assistiu ao workshop de Vancayseele. Ao lado de três grandes vasilhas de chocolate derretido (escuro, branco e ao leite) e sobre uma mesa de mármore (a melhor superfície para trabalhar com o produto), suas manipulações pareciam mágicas.
Não foi à toa que os alunos aplaudiram várias vezes, surpreendidos e entusiasmados quando as pastas de chocolate, por obra do canhoto Vancayseele, se transformavam velozmente em cigarrinhos bicolores, cisnes, leques e conchas.
A seguir, o chocolatier ensina a reconhecer as boas iguarias feitas de cacau e conta o que mais o incomoda nos chocolates brasileiros: o excesso de açúcar.

 

Folha - Por que o Brasil, que é uma das pátrias do cacau, não é também um produtor conceituado de chocolate?
Philippe Vancayseele -
Creio que isso se deve a razões culturais. A Europa desenvolveu há muito tempo a tecnologia do chocolate, que ela tem exportado para outros países, como os Estados Unidos. Por isso estou aqui, para expandir essa cultura. Além disso, creio que o clima contribuiu para a cultura do chocolate na Europa. Temos um inverno às vezes muito frio e prolongado, e as pessoas tendem a comer mais chocolates no inverno do que no verão.

Folha - O sr. já experimentou chocolates feitos no Brasil? Já comeu um brigadeiro?
Vancayseele -
Já, pois me interessa saber o que os brasileiros consomem. Mas eu diria que o chocolate daqui é muito açucarado. Mesmo o chocolate escuro será muito doce no país. Eu prefiro o chocolate com gosto de chocolate mesmo, isto é, com ao menos 70% ou 75% de cacau na receita.

Folha - Como se pode identificar um bom chocolate?
Vancayseele -
Primeiro, é preciso saber se o cacau utilizado é de boa qualidade. E qual a quantidade de cacau que há no produto. Quanto mais cacau, mais escuro será o chocolate. Depois, é preciso verificar o que chamo de refinamento do produto, ou seja, quanto menos granulado e mais fino ele for para o paladar, melhor ele será. A quantidade de açúcar é também um critério. Quanto mais açúcar, menos o gosto de chocolate sobreviverá. No caso de chocolate ao leite, é preciso que o leite em pó do qual é feito também seja de grande qualidade.

Folha - De onde vem o melhor cacau do mundo, hoje?
Vancayseele -
O maior produtor é a Costa do Marfim, e vem de lá um dos melhores cacaus. Mas tudo é uma questão de gosto. As sementes de Java são muito boas, bem como as do Brasil. Cada país é um pouco especializado num tipo de semente e de cultivo. Os produtores mundiais utilizam todas essas sementes para fazer um sabor próprio, uma marca. Quando se come um chocolate Callebaut, ou Lindt, eles são diferentes porque o modo de produção é diverso, e as sementes, as misturas, a torrefação também.

Folha - Fora a Bélgica e a Suíça, quais são os outros países que produzem bons chocolates?
Vancayseele -
A França tem um chocolate muito bom.

Folha - Os melhores produtores ainda trabalham artesanalmente?
Vancayseele -
Não. Na Bélgica, ao menos, não existe mais a produção manual. Naturalmente, os cursos são manuais. E as experimentações também: os testes são feitos numa escala pequena até se equilibrar a receita, quando então partimos para a grande produção. Algumas companhias podem fazer referências à fabricação artesanal, mas só para efeito publicitário. Faz tempo que isso morreu.

Folha - Quais são os bons chocolates feitos em escala industrial?
Vancayseele -
Neuhaus e Godiva são os belgas mais conhecidos.

Folha - Quais os principais inimigos do chocolate?
Vancayseele -
Antes de tudo, a umidade. É preciso evitá-la totalmente. O chocolate é um produto muito sensível, e o ar e a luz, mesmo a luz artificial, perturbam o seu gosto. A temperatura variável é também prejudicial.

Folha - Como se deve guardar o chocolate?
Vancayseele -
É preciso evitar a umidade, a luz, as variações de temperatura. O melhor lugar para conservar o chocolate é um lugar seco, numa caixa de metal, sem odor. Evite totalmente caixas de madeira, que podem contaminar com bactérias, e também as caixas de papelão, pois o chocolate vai absorver o gosto de papel. Também não se deve colocar o chocolate na geladeira, pois ele vai absorver a umidade. Se for preciso guardá-lo na geladeira, que esta seja com controle de umidade ou seja seca. Se vamos degustar um chocolate, ele não deve ir diretamente da geladeira à boca. Ele deve estar na temperatura ambiente, porque é quando o gosto se libera.

Folha - Que bebidas acompanham bem o chocolate?
Vancayseele -
Geralmente, os vinhos doces de boa qualidade, como o Porto. Um Porto com um pedaço de chocolate, sobretudo de origem seleta (de um só tipo de semente, sem mistura), é realmente uma boa degustação.

Folha - O que acha da utilização de chocolate em pratos salgados?
Vancayseele -
Pode dar certo, se não houver exageros. Se vamos introduzir chocolate num prato salgado, é preciso saber primeiro que chocolate será utilizado. Devemos partir do chocolate para buscar a combinação com os pratos salgados, e não o contrário.

Folha - O sr. já experimentou bombons com pimenta?
Vancayseele -
Sim. Eu, particularmente, não gosto dos ingredientes muito fortes. Mas a receita pode funcionar, se a pimenta for bem dosada e, no final, o gosto do chocolate se sobrepuser. É preciso decidir se queremos degustar o chocolate ou comer pimenta.


Colaborou Suzana Singer, secretária de Redação


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