São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Agora e na hora da nossa morte

A velhice é o início de uma batalha. E, pior que isso, é o começo de um massacre que todo homem experimentará

O PROBLEMA da velhice é a invisibilidade. Creio que era Bioy Casares quem contava a mágoa: ele, outrora belo na juventude, caminhando pelas ruas e percebendo que as mulheres já não devolviam o olhar como antigamente. Um fantasma entre os vivos. E os vivos não olham para um fantasma.
Lembrei Bioy Casares ao ler "Homem Comum" (Cia. das Letras), a novela de Philip Roth. Existe passagem semelhante: quando o personagem envelhecido inicia diálogo com uma mulher mais jovem que corre na praia. Ela sorri, ela responde. Ela aceita o telefone dele e promete ligar de volta. Nunca liga. O fato é escrito com a secura de Roth. Mas chega para entender o essencial: a velhice é o início de uma batalha. E, pior que isso, é o início de um massacre.
"Homem Comum" é a história desse massacre que todos os homens comuns vão experimentar. Millôr Fernandes costumava dizer que o problema da morte é não ser possível espantar as moscas. Fato, mestre, fato. Mas o pior vem antes: quando a doença se instala, esse exército interior na conquista do seu território. E, com a doença, a solidão do confronto com o fim.
Críticos vários escreveram que a novela de Roth revisita Tolstói. Sem dúvida. E não deixa de ser estranho que a literatura dos últimos cem anos tenha dedicado tão pouco espaço a esse calvário nosso: o momento em que o corpo desperta do seu anonimato para resgatar a sua mortalidade. Amor e sexo? Tudo visto. Poder e ambição? Tudo lido. Mas faltam as banalidades terrenas. Faltam os terrores mais banais.
Tolstói é uma exceção, sim. E o seu "A Morte de Ivan Ilyich" é provavelmente o relato definitivo da experiência. Uma dor que chega sem aviso, como sempre chega, à vida perfeita de Ivan. A perfeição que se desfaz. E a saúde dos outros, que ganha contornos ofensivos aos olhos enfermos do enfermo. Lentamente, Ivan deixa de ser uma presença válida na vida de terceiros; passa a ser um empecilho, um embaraço, uma piada de mau gosto.
Roth repete a dose. Como em Tolstói, a experiência é fortemente individualizada porque a doença e a morte só ganham contornos reais e universais quando acontecem na vida comum de um indivíduo. Mas, ao contrário de Tolstói, não há no personagem de Roth a consciência tranqüila que, apesar de tudo, redime Ivan no final: as páginas mais pungentes de "A Morte de Ivan Ilyich" acontecem quando o moribundo revisita uma vida aparentemente escorreita e pergunta simplesmente por que: por que ele, por que agora, por que assim.
O personagem de Roth sabe que a pergunta lhe está interdita: ele alienou os vivos por fraqueza, egoísmo ou luxúria. E, num mundo sem Deus, resta-lhe a consolação dos mortos: os mortos que ele visita no cemitério final, conversando e até gratificando, por irônica antecipação, o coveiro que o acabará por enterrar.
Enganam-se os que acreditam que os relatos breves de Roth são pausas para obras maiores. "Homem Comum" é uma obra maior e será um dia lido e falado como hoje lemos e falamos de Ivan Ilyich.


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Crítica/televisão: Em sua estréia, Record News imita o padrão Globo, mas talk-show se destaca
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.