|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOÃO PEREIRA COUTINHO
Agora e na hora da nossa morte
A velhice é o início de uma batalha. E, pior que isso, é o começo de um massacre que todo homem experimentará
O PROBLEMA da velhice é a invisibilidade. Creio que era Bioy
Casares quem contava a mágoa: ele, outrora belo na juventude,
caminhando pelas ruas e percebendo que as mulheres já não devolviam
o olhar como antigamente. Um fantasma entre os vivos. E os vivos não
olham para um fantasma.
Lembrei Bioy Casares ao ler "Homem Comum" (Cia. das Letras), a
novela de Philip Roth. Existe passagem semelhante: quando o personagem envelhecido inicia diálogo com
uma mulher mais jovem que corre
na praia. Ela sorri, ela responde. Ela
aceita o telefone dele e promete ligar
de volta. Nunca liga. O fato é escrito
com a secura de Roth. Mas chega para entender o essencial: a velhice é o
início de uma batalha. E, pior que isso, é o início de um massacre.
"Homem Comum" é a história
desse massacre que todos os homens comuns vão experimentar.
Millôr Fernandes costumava dizer
que o problema da morte é não ser
possível espantar as moscas. Fato,
mestre, fato. Mas o pior vem antes:
quando a doença se instala, esse
exército interior na conquista do
seu território. E, com a doença, a solidão do confronto com o fim.
Críticos vários escreveram que a
novela de Roth revisita Tolstói. Sem
dúvida. E não deixa de ser estranho
que a literatura dos últimos cem
anos tenha dedicado tão pouco espaço a esse calvário nosso: o momento em que o corpo desperta do
seu anonimato para resgatar a sua
mortalidade. Amor e sexo? Tudo
visto. Poder e ambição? Tudo lido.
Mas faltam as banalidades terrenas.
Faltam os terrores mais banais.
Tolstói é uma exceção, sim. E o
seu "A Morte de Ivan Ilyich" é provavelmente o relato definitivo da experiência. Uma dor que chega sem
aviso, como sempre chega, à vida
perfeita de Ivan. A perfeição que se
desfaz. E a saúde dos outros, que ganha contornos ofensivos aos olhos
enfermos do enfermo. Lentamente,
Ivan deixa de ser uma presença válida na vida de terceiros; passa a ser
um empecilho, um embaraço, uma
piada de mau gosto.
Roth repete a dose. Como em
Tolstói, a experiência é fortemente
individualizada porque a doença e a
morte só ganham contornos reais e
universais quando acontecem na vida comum de um indivíduo. Mas, ao
contrário de Tolstói, não há no personagem de Roth a consciência
tranqüila que, apesar de tudo, redime Ivan no final: as páginas mais
pungentes de "A Morte de Ivan Ilyich" acontecem quando o moribundo revisita uma vida aparentemente escorreita e pergunta simplesmente por que: por que ele, por
que agora, por que assim.
O personagem de Roth sabe que a
pergunta lhe está interdita: ele alienou os vivos por fraqueza, egoísmo
ou luxúria. E, num mundo sem
Deus, resta-lhe a consolação dos
mortos: os mortos que ele visita no
cemitério final, conversando e até
gratificando, por irônica antecipação, o coveiro que o acabará por enterrar.
Enganam-se os que acreditam que
os relatos breves de Roth são pausas
para obras maiores. "Homem Comum" é uma obra maior e será um
dia lido e falado como hoje lemos e
falamos de Ivan Ilyich.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Crítica/televisão: Em sua estréia, Record News imita o padrão Globo, mas talk-show se destaca Índice
|