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Todos nós possuímos nossos arraiais de Canudos
ARIANO SUASSUNA
Em Canudos, a bandeira usada
pelo povo era a do Divino Espírito
Santo, a bandeira do Brasil real
que, a meu ver, é o do povo pobre,
negro, índio e mestiço.
É o país que o Brasil oficial, o dos
brancos e poderosos, mais uma
vez -e como já sucedera em Palmares- iria esmagar e sufocar ali,
confrontando-se então, no caso,
duas visões opostas de justiça.
Como era de esperar, a justiça
dos poderosos esmagou a do povo, e os acontecimentos de Canudos continuam a se repetir no Brasil a cada instante.
Em todos os campos de atividade; diariamente, incessantemente.
Quando, no interior, uma milícia
de poderosos, governamental ou
não, assassina um pobre posseiro
e sua família, é o Brasil dos que incendiaram, assolaram ou arrasaram Canudos que está atirando,
que está matando o Brasil real, o
do Povo. Quando, numa cidade
qualquer, a polícia invade e destrói
uma favela, é outro dos nossos
inumeráveis arraiais de Canudos
que está sendo destruído e assolado pelo Brasil oficial.
E temos que, ao mesmo tempo,
ampliar e restringir a imagem, para que ela se torne realmente eficaz
com expressão do nosso pensamento. Ampliá-la no plano internacional para dizer que, diante de
países ricos e poderosos como os
Estados Unidos, a Alemanha e a
Rússia, o Terceiro Mundo é um
imenso arraial de Canudos, pobre
e injustiçado.
De modo que, quando os Estados Unidos invadem o Panamá e
Granada, ou ameaçam a Líbia;
quando a Rússia invade o Afeganistão; quando a França se impõe
ao Chad; e quando todos se juntam para esmagar o povo do Iraque, assassinando crianças, velhos
e pessoas de todos os tipos com
mísseis e outras armas de seus poderosos arsenais, o Panamá, Granada, a Líbia, o Chad e o Iraque
são, todos, arraiais de Canudos
que estão sendo esmagados ou humilhados.
Mas, para não sermos hipócritas, temos também que restringir a
imagem ao âmbito de nossas vidas
pessoais, pois, ou reconhecemos
as nossas culpas ou nunca começaremos a lutar contra o inferno
interior que cada um de nós carrega dentro de si.
Tenhamos então a hombridade
de confessar que todos nós, integrantes do Brasil oficial, possuímos também -na cozinha, no
jardim, no lavador- nossos arraiais de Canudos.
Por isso, quando, na casa de
qualquer um de nós, brasileiros
brancos e privilegiados, um casal
oprime e explora uma empregada
doméstica negra e pobre, é o Brasil
oficial que está humilhando o Brasil real e violando a dignidade de
seu direito.
Ao falar assim, procuro não ser
otimista nem pessimista. Sou apenas esperançoso diante de um futuro que sei difícil, mas não considero impossível.
Por isso concluo afirmando que,
no Brasil, a justiça somente será
efetiva quando, um dia, se anular
essa terrível dilaceração de opostos; quando, afinal, se transformar, por meio de uma fusão, de
uma identificação verdadeira e
fraterna, a justiça do país oficial
segundo a imagem e semelhança
do país real. Ou, em palavras mais
exatas: quando a justiça do Brasil
oficial, pela primeira vez em nossa
atormentada história, se tornar
expressão perfeita e acabada da
justiça do Brasil real.
Ariano Suassuna, 70, é escritor e secretário da
Cultura de Pernambuco.
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