São Paulo, sábado, 3 de outubro de 1998

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LIVRO LANÇAMENTOS
Obra revela o outro lado das navegações

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Se existe algo de positivo nas efemérides, é a eventual publicação de livros sobre aquilo que se comemora -mesmo que o aniversário em questão não seja do agrado de alguns. É o caso dos 500 anos do descobrimento do Brasil, efeméride-mor do ano 2000.
O atual e talvez pouco duradouro interesse no tema das navegações portuguesas já serviu, pelo menos, para que os brasileiros tivessem acesso a um clássico da língua que falam.
A "História Trágico-Marítima", organizada por Bernardo Gomes de Brito, foi primeiro publicada no século 18, mas trata de eventos passados nos séculos 16 e 17. Agora sai uma nova edição brasileira, por Lacerda Editores/Contraponto.
Ler este livro significa entender muito sobre Portugal e, portanto, sobre os brasileiros.
O pequeno país na orla ocidental da cristandade foi destinado a um papel exagerado na história universal: iniciar a tal da globalização, juntando cultural, social e economicamente os continentes do planeta.
Era, e continua sendo, um país minúsculo, com uma população idem. Onde conseguiu-se a energia para descobrir o resto do mundo é um tema que historiadores continuam debatendo.
Meio milênio depois de Vasco da Gama inaugurar a rota marítima para o Oriente, sua viagem transformou-se em um misto de saudosismo com triunfalismo. Escolas, hospitais, pontes, em Portugal, e até um time de futebol, no Brasil, levam seu nome.
A "História Trágico-Marítima" costuma ser descrita como o lado podre das grandes navegações - "a face oxidada do dourado medalhão da descoberta e da conquista", nas palavras de José Saramago, certamente o escritor português mais conhecido no Brasil, que comentou este livro em 1971.
O livro é principalmente uma sequência de relatos de naufrágios de navios portugueses, notadamente das ricas naus da "carreira da Índia" -a rota de comércio descoberta por Vasco da Gama que levava à Índia, à China, ao Japão.
Por que naufragavam tantos navios? A razão que o livro aponta é uma básica: a cobiça. Sobrecarregadas, as naus afundavam com facilidade. Também eram de construção apressada, levavam pouca gente hábil e um excesso de passageiros.
Essa incapacidade de Portugal de manter uma navegação eficiente para a Ásia foi um dos principais motivos da decadência do império marítimo que o país construiu na região.
As estatísticas mostram que, de 1497 a 1653, as perdas atingiram 19,08% dos navios que partiram de Portugal na carreira da Índia. No final do século 16, o problema ficou muito grave: dos 55 navios que partiram de 1590 a 1599, 43,64% se perderam.
Segundo Saramago, nos "Lusíadas", epopéia oficializada de uma nação largada na aventura do mar desconhecido, a morte é cenográfica, adorna-se de um fundo de deuses complacentes e risonhos, violentos só por necessidade de clímax.
Tudo se passa como se já a pátria ali estivesse presente, abençoando todos heróis e os mártires, desenhando-lhes em maneirismo os gestos, levantando-lhes estátuas para a reverência da posteridade. Na "História Trágico-Marítima" morre-se em todas as páginas, todos os dias, como se morre na "Ilíada".
Ao ler este livro, fica mais fácil entender por que uma música triste como o fado é o símbolo de Portugal.

Livro: História Trágico-Marítima Organização: Bernardo Gomes de Brito, com apresentação de Ana Miranda e introdução e notas por Alexei Bueno Lançamento: Lacerda Editores/ Contraponto
Quanto: R$ 40 (546 págs.)



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