São Paulo, Quarta-feira, 03 de Novembro de 1999
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CRÍTICA
Mundo e submundo se enfrentam na conclusão da trilogia

da Reportagem Local

Mundo e submundo estão cara a cara em "A Vida É Doce", o primeiro disco independente de Lobão, que há muito uivava e uivava contra o sistema, sem nunca encontrar alternativa real a ele.
Terá, para o artista e para a falida família musical brasileira, infinito significado político. Seja ou não bem-sucedido, expressa desde já uma vitória inédita, o sopro de um novo tempo.
Se antes ele exalava espírito underground sem se desatrelar das gravadoras nem do espaço que sua fama e sua verborragia lhe proporcionavam, agora tudo se inverte. Pela primeira vez outsider de fato, usa as benesses de parte do mesmo sistema para impingir sua pequena guerrilha.
Isso há muito acontecia, e os próximos movimentos devem ser observados com atenção. Lobão mais MP3 podem ser o azeite que vai descarrilhar o trenzão -ou não. Mas nada disso é música.
"A Vida É Doce" é música, e aí a guerrilha é pessoal. Lobão não consegue se perder de ser renitente, repetitivo. Seu décimo álbum é todo centrado num agrupamento já bem conhecido de temas -barras pesadas, desterro, morte, otimismo, amor-, e Lobão evolui não evoluindo.
O amanhecer se anuncia após a "Noite", mas ainda não chega ("não vai mais amanhecer", proclama a pesadíssima "Tão Menina"). O sujeito teimoso percebe o dia, mas ainda de costas.
O conjunto, embora tematicamente obsessivo -no mesmo sentido vai a busca por contemporaneidade, agora via o trip hop de "Universo Paralelo"-, é corpulento, e isso nada tem a ver com guerrilha cultural ou comas alcoólicos (afinal constantes em sua história e insuficientes para decidir um disco, um momento).
A pressão que Lobão diz sentir é de fato sua mola, repercute em música, no uso sofisticado, embora artesanal -outra vitória- de conceitos em embate, como contemporaneidade e espírito retrô, MPB e música importada.
O principal ganho? É que de todo esse turbilhão resulta, pela primeira vez, num disco plácido, em que violência não remete à agressividade, à revolta, a impulsos adolescentes. O hino, aí, é "Pra Onde Você Vai", encontro definitivo de Lobão com a delicadeza.
É assim também, em escala menor, "Uma Delicada Forma de Calor", briga íntima do artista com seu maior sucesso, "Me Chama" (84). O que era "chove lá fora e aqui faz tanto frio" se transforma em "agora, num dia em que eu choro, eu tô chovendo muito mais que lá fora" -mansa tormenta, que atravessa também "Mais Uma Vez", "Ipanema no Ar", "Tão Perto Tão Longe"...
É em momentos assim -intercalados com a tensão constante e rechonchuda de temas como "El Desdichado 2", "Tão Menina" e "A Vida É Doce"- que Lobão coteja um paralelo com um possível ídolo, Lou Reed, sem querer ou querendo presença cíclica no CD.
Fosse assim, "A Vida É Doce" seria Lobão buscando seu "velvet underground", seu submundo de veludo, plantado nas barbas do sistema -e povoado, ele não está mentindo, por Maysas e Dolores, espíritos de um (sub)mundo muito morto e muito vivo.
Constitui obra conturbada, de um homem com uma proposta. A guerrilha social e a pessoal se justapõem, há muito ainda por acontecer. Seus contemporâneos vão de "Que País É Este" e "Aluga-se", mas Lobão parece bem mais jovem. (PAS)


Avaliação:    


Disco: A Vida É Doce Artista: Lobão Lançamento: Universo Paralelo/MID (25 de novembro nas bancas) Quanto: R$ 14,90

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