São Paulo, Quarta-feira, 03 de Novembro de 1999
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LITERATURA
Michel Houellebecq estará amanhã no Brasil para discutir o que sobrou da cultura francesa
Último maldito francês vem ao país

JUREMIR MACHADO DA SILVA
especial para a Folha

Inclassificável, irreverente e surpreendente nas suas posições intelectuais e políticas, Michel Houellebecq, que estará amanhã no Brasil para um evento na Folha (leia texto à esq.), é um"serial killer" da cultura em luta contra os dogmas da narrativa literária do século 20 e contra as utopias pseudolibertárias que geraram o narcisismo do final do século. Sempre disposto a combater o política, estética, intelectual e culturalmente correto, prefere Auguste Comte a Karl Marx e o século 19 ao 20. Com ele, nunca se sabe onde termina a provocação e começa a desmitificação.
Defensor do amor contra o egocentrismo e de valores contra a indiferença contemporânea, vê nas utopias de maio de 68 o detonador de um efeito perverso: o neoliberalismo comportamental dominante neste final de milênio. Em todo caso, Houellebecq não encontra a solução para isso nos clássicos projetos das esquerdas partidarizadas e sempre sectárias.
Na entrevista que segue, Houellebecq abre o jogo e mostra as suas escolhas, dúvidas e mesmo o desconhecimento de certos temas, entre os quais o do imenso universo brasileiro, abordado de forma transversal e irônica em "Partículas Elementares", livro que o consagrou (lançado no Brasil pela editora Sulina) no mundo inteiro. Para quem pensava que a grande linhagem dos escritores malditos franceses estava esgotada, Michel Houellebecq e o seu "Partículas Elementares" representam o inesperado.

Folha - Afirma-se, com frequência, que a literatura francesa está em crise. O seu livro, "Partículas Elementares", com a polêmica que provocou e o com o sucesso de público, demonstra o contrário. O senhor considera-se o "papa" de uma "escola da lucidez" e também o renovador da ficção do seu país?
Michel Houellebecq -
Ninguém pode autoproclamar-se papa ou líder de nada; são sempre os outros que decidem sobre isso. De fato, constato que muitos jovens escritores franceses de hoje se sentem próximos de mim ou, até mesmo, declaram-se influenciados pelo que escrevo.
Já a impressão de declínio da literatura francesa no estrangeiro vem do fato que depois do novo romance, há 40 anos, nada mais em literatura conseguiu ultrapassar as nossas fronteiras. Ora, o novo romance é chato, sem perspectiva de permanência, nascido morto. Mas não exerceu qualquer influência sobre os autores franceses contemporâneos.

Folha - "Partículas Elementares" é um livro extraordinário pela sua capacidade de derrubar mitos, especialmente os de maio de 68. Como o senhor reage, em função disso, quando o acusam de ser reacionário?
Houellebecq -
No plano político, já me situei, explicitamente, várias vezes, na esteira de Auguste Comte. Não o Comte vulgarizado pelo positivismo primário, mas o que sobressai de uma leitura profunda da sua obra. Sem entrar muito, por agora, nos detalhes, a divisa comtiana "Ordem e Progresso" permite, já de início, entender porque rejeito, com energia, posicionar-me com base na oposição progressistas/reacionários ou esquerda/direita, à qual se resume o debate na França. Creio ser possível pensar foram dessa redução. Infelizmente Auguste Comte está esquecido em seu próprio país e foi, quase sempre, interpretado de forma inadequada. Ele é desconhecido do grande público, muito pouco estudado nas universidades e os seus principais livros tornaram-se quase impossíveis de encontrar. Não seria exagerado afirmar que sou o único escritor francês que o leu realmente. Em consequência, até agora, não fui compreendido. Talvez no Brasil, em função da sua história, a situação seja diferente. Com efeito, o Brasil representa certamente a última chance de conseguir explicar as minhas posições filosóficas e políticas.

Folha - Numa passagem de "Partículas Elementares", há uma sátira impiedosa ao Brasil. O senhor conhece a literatura brasileira e que valor tem de fato o Brasil na sua vida?
Houellebecq -
Com razão ou não, os brasileiros parecem aos franceses as criaturas mais eróticas do planeta. Por causa disso, o Brasil goza na França de um extraordinário prestígio, sempre em voga. Enquanto isso, tudo o que, de resto, adivinha-se ou percebe-se, como a violência, a corrupção e a miséria, por serem desagradáveis, restam encobertos. Mais do que uma sátira ao Brasil, a passagem citada cumpre o papel de sátira da condição do macho ocidental, sempre pronto a aceitar seja o que for para atiçar ligeiramente a sua fibra erótica languescente. Afora esses poucos clichês, partilhados pela maioria dos meus compatriotas, nada sei do Brasil nem da sua literatura.

Folha - Os seus personagens masculinos de "Partículas Elementares" são duplos um do outro ou, de acordo com a linguagem atual, clones. Ambos desfavorecidos pela sorte. O livro representa uma crítica deste final de século decadente em que as pessoas não têm mais identidade clara nem referenciais válidos?
Houellebecq -
Com certeza. Sem religião, sem moral, a vida tornou-se impossível, insuportável para o homem. As mulheres, ao menos até agora, possuem o amor, o que as salva. Mas os homens, no estado atual da nossa civilização, não passam de condenados, de excomungados.


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