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LITERATURA
Doris Lessing lança em Londres "The Sweetest Dream" e é agraciada na Espanha com o Prêmio Príncipe de Astúrias
"Não pedi para ser filha da guerra"
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
"O dia hoje amanheceu lindo. O
sol está brilhando, é uma pena
que o inverno esteja chegando.
Este foi o outubro mais morno e
agradável dos últimos anos."
Quem atende assim o telefone,
com a voz rouca de quem acaba
de acordar, é Doris Lessing, 82,
uma das mais importantes escritoras da língua inglesa, que acaba
de lançar no Reino Unido o 25º
romance de sua extensa carreira.
"The Sweetest Dream", ainda
sem previsão de lançamento no
Brasil, é uma ficção que passeia
pela cultura e efervescência de
idéias dos anos 60 e antecipa a
frustração que o século 20 traria a
partir de então para aqueles que,
como Lessing, cresceriam com "a
marca da guerra fincada em suas
histórias pessoais". A desilusão de
seus contemporâneos com o comunismo permeia toda a obra.
A princípio, o livro seria o terceiro volume de sua autobiografia
-cujos dois primeiros tomos já
foram lançados aqui ("Andando
na Sombra" e "Debaixo da Minha
Pele", ambos pela Companhia das
Letras). Mas, ao começar esta que
seria a última parte da trilogia,
Lessing mudou de idéia e resolveu
transformá-la num romance.
"The Sweetest Dream" é uma
saga familiar que atravessa o século 20. Os principais atores deste
enredo são Frances ("parcialmente eu", diz Lessing), seu ex-marido comunista Johnny e Julia, a
matriarca. "Suas vidas giram em
torno do dano que sofrem e vêem
sofrer os jovens nascidos da guerra. É também um livro sobre o estrago causado pelos sonhos, pelo
idealismo", diz Lessing.
Politicamente ativa durante toda a carreira, Lessing também já
publicou, além de romances, ensaios e textos para teatro e ópera.
Seu primeiro livro, "The Grass Is
Singing", fazia uma crítica à política racial do Zimbábue (então
Rodésia, onde cresceu). Já "The
Golden Notebook", por exemplo,
tornou-se uma referência para as
feministas -ainda que Lessing
faça ressalvas à essa apropriação.
No último dia 26 de outubro, a
autora, que nasceu no Irã e mora
em Londres, recebeu na Espanha
o Prêmio Príncipe de Astúrias.
Leia os principais trechos da entrevista que a escritora concedeu à
Folha, por telefone, da Inglaterra.
Folha - Por que a sra. transformou a terceira parte de sua biografia em um romance?
Doris Lessing - Não quis machucar ou prejudicar pessoas frágeis.
Tenho insistido em dizer que, em
"The Sweetest Dream", eu não fiz
da minha autobiografia uma ficção. Em termos gerais, trata-se de
um romance familiar à moda antiga. Há coisas e pessoas totalmente inventadas, ao mesmo
tempo em que há muito de minhas impressões.
Folha - E o que a interessa mais, a
ficção ou o relato autobiográfico?
Lessing - Os dois são interessantes e difíceis a seu modo. Na autobiografia, é preciso ter disciplina e
correção. Na ficção é preciso ser
livre, mas ao mesmo tempo saber
controlar essa liberdade.
Folha - Se a sra. pudesse mudar
algo de sua biografia, o que seria?
Lessing - Nada. Em primeiro lugar, porque é impossível que uma
passagem de sua vida seja transformada sem que isso não tenha
consequências em todo o resto
dela. No meu caso, naqueles dias,
na África, era preciso sair e procurar um caminho. Se eu não tomasse uma das decisões que tomei, eu teria tido um outro destino. Era minha única saída. Em segundo lugar -e talvez essa seja a
principal constatação que faço a
essa altura- porque descobri
que é muito pouco o que podemos fazer por nossas vidas.
Folha - Como assim?
Lessing - Quando olho para as
difíceis decisões que tomei, concluo que elas não eram nada perto
do que foi o contexto em que cresci. Minha geração foi marcada pela 2ª Guerra. Não pedi para ser filha da guerra. Não quisemos isso,
mas está fincado em nós e determinou, praticamente, tudo.
Folha - Londres mudou muito
desde os anos 60 retratados em
"The Sweetest Dream"?
Lessing - Bom, o clima infelizmente não mudou muito... Mas a
cidade, sim. Está melhor, hoje é
mais efervescente. Tudo o que se
dizia sobre a agitação da Londres
dos anos 60, eu acho que vale mais
para a cidade que vejo hoje.
Folha - A sra. vem trabalhando
em suas memórias há anos. Esse
processo fez com que repensasse
sua atuação política?
Lessing - Não. A alternativa que
escolhi foi a única que teria sido
possível para mim na época. Hoje
eu não aderiria ao comunismo,
ninguém de bom senso faria isso
agora. Este é um tempo difícil para abraçar uma só bandeira, o que
de maneira nenhuma é negativo.
Não procurei rever minha posição política, pois não é possível
mudar o que fizemos. Quanto ao
tempo que dediquei aos livros, foi
estimulante, escrevi um monte de
outras coisas nesse período.
Folha - Escrever a autobiografia
ajudou-a a esclarecer coisas sobre
sua história íntima?
Lessing - Sim, há algo muito gratificante, que é o fato de me fazer
lembrar de um monte de coisas de
que há muito havia me esquecido.
Folha - O que a sra. pensa da ação
militar contra o Afeganistão?
Lessing - Um erro. É só olhar para a história dos séculos que se
passaram, cada vez que um país
foi atacado dessa maneira, isso só
fez aumentar a possibilidade de
uma coalizão de apoio a esse alvo.
THE SWEETEST DREAM - Autora: Doris
Lessing (Inglaterra, 2001). Editora:
Flamingo. Preço: 13,59 libras (479 págs.).
Como encomendar:
www.amazon.co.uk ou
www.livcultura.com.br
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