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MARCELO COELHO
Revelações num maço de cigarros
Já faz algum tempo que os
maços de cigarro vêm acompanhados de fotos mais ou menos assustadoras, advertindo sobre as conseqüências do tabagismo. Um doente com máscara de
oxigênio, um homem desconsolado com sua mulher na cama, o
"close" de um sorriso necrosado
informam sobre os riscos de câncer no pulmão, impotência sexual ou não sei que males da
gengiva.
Desconfio um pouco da eficácia
dessas mensagens. As fotos não
são das mais chocantes. Quem
sabe até poderia haver uma escala de radicalidade: os maços de
cigarro "light" teriam fotos mais
suaves e, conforme a dosagem de
alcatrão e nicotina, chegaríamos
a cenas de verdadeiro horror.
Em todo caso, li que a idéia das
fotos antitabagistas poderá ser
adotada em outros países. Provavelmente o que conta não é o susto provocado pelas imagens no
consumidor -que já comprou o
maço de qualquer jeito-, mas a
vergonha de continuar fumando
com aquela foto à sua frente.
Acredito que tenha menos medo
do câncer do que de ser chamado
de burro.
Há quem desenvolva estratégias para não ver as fotos: enfia
uma nota fiscal entre a foto e o
celofane, coloca o isqueiro por cima... Nada ilustra melhor a própria idéia do vício. O vício não
nasce da ignorância, da desinformação, mas do seu contrário. É o
desejo de conhecer o mal (e de esconder-se desse conhecimento) o
que está de fato em jogo. Não foi
por falta de advertência que Eva
quis provar do fruto proibido.
Em "O Natimorto", extraordinário livro de Lourenço Mutarelli que acaba de ser lançado pela
editora DBA, o personagem principal (chamado apenas de "O
Agente") constrói uma relação
bizarra com as figuras que encontra nos maços. Usa-as para
prever o futuro, associando-as às
diversas cartas do tarô.
Eis um exemplo do seu método:
"No maço, um homem sufocado
afrouxa a gravata. "Quem fuma
não tem fôlego para nada." O Enforcado, lâmina 12. Abandono.
Reversão da mente e da maneira
de viver." Cito sem reproduzir a
disposição das frases ao longo da
página, cadenciadas como se fossem versos. As associações feitas
pelo personagem são cada vez
mais remotas e não esclarecem
muito sobre a evolução da narrativa.
A foto do casal na cama, avisando que o fumo causa impotência, é interpretada como a
carta 18 do tarô, a Lua: "Dois
cães uivam enquanto bebem lágrimas lunares. Sob eles, um lençol de água. Na água, uma criatura, dizem, o escorpião. A Lua é
cortada, e não vemos a parte superior. No maço, dois seres humanos. (...) Na parte inferior da
imagem, um lençol cobre seus órgãos genitais. Na parede azul, como o céu, vemos ao centro um
detalhe da moldura de um quadro que não vemos. A Lua."
Lourenço Mutarelli é autor
premiado de histórias em quadrinhos. Essa sua experiência na
prosa de ficção não é bem um romance: a narrativa se organiza
em diálogos, intercalados por pequenos trechos em "verso", como
os que acabo de citar. Os diálogos, entre "O Agente" e outra personagem, uma cantora chamada
"A Voz", seguem um ritmo muito
particular, pois as falas de um e
de outro não se alternam regularmente, como numa entrevista
pingue-pongue ou nas rubricas
de uma peça de teatro. Demoramos para perceber que o texto de
Mutarelli está na verdade mais
próximo do roteiro de uma história em quadrinhos, cujos desenhos, entretanto, não serão revelados ao leitor.
Temos só as falas, não as imagens: ao mesmo tempo, o livro gira em torno da interpretação
(obscura, inquietante, inconclusiva) de figuras, de fotos e de arcanos.
Estamos próximos da poética
surrealista, não no que tenha de
mais folclórico e exterior -delírio, verborragia, freudianismo
vulgar- mas pelo seu lado mais
insolúvel, hipnótico e vampiresco.
Quem foi à exposição de arte
dadá e surrealista no Instituto
Tomie Ohtake (em cartaz até 28
de novembro) pôde certamente
experimentar, diante de obras
como as de Man Ray ou de Max
Ernst, uma sensação de angústia,
de humor e de silêncio muito intensa, que parece transcender o
que o surrealismo tinha de mais
imediatamente provocador. É
como se muitas obras daquela
exposição tivessem energia própria; assemelham-se, de fato, a
máquinas destinadas a gerar
não se sabe bem o quê, e é esse
"não-saber", essa insciência, que
se implanta em nosso espírito, inquietante e corrosiva, como uma
semente de morte.
Como um câncer, talvez, ou como um feto ameaçador e indecifrável, que todos temos dentro de
nós mesmos. É esse o universo
mental de "O Natimorto", que se
expressa, entretanto, numa forma despojada, econômica, sem
nenhuma gesticulação feérica.
A história do livro segue uma
psicologia clássica e um roteiro
bastante claro: acompanhamos
um caso de amor que começa e
que termina, entre um caça-talentos e uma cantora. Pormenores estranhos se entreabrem, contudo, a cada página. A voz da
cantora tem a peculiaridade de
ser inaudível. Uma história estranha é contada e recontada, com
variações cada vez mais cruéis:
fala-se de um monstro que existe
no fundo de um poço e que, ao ser
encontrado, nada mais é do que a
nossa face refletida na água.
"Tu és isto" ("Tat tvam asi"): a
frase da sabedoria oriental é citada em "O Natimorto". O livro de
Mutarelli também funciona para
nós como um espelho, ao mesmo
tempo profundo, luminoso e impenetrável. Na tradição de Rimbaud e dos surrealistas -cujo interesse pelo ocultismo e pelo tarô é
bastante conhecido-, a literatura se afirma aqui como um ato de
vidência. Não se trata de ocultismo, entretanto, mas, sim, de revelação.
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