São Paulo, quarta-feira, 03 de novembro de 2004

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MARCELO COELHO

Revelações num maço de cigarros

Já faz algum tempo que os maços de cigarro vêm acompanhados de fotos mais ou menos assustadoras, advertindo sobre as conseqüências do tabagismo. Um doente com máscara de oxigênio, um homem desconsolado com sua mulher na cama, o "close" de um sorriso necrosado informam sobre os riscos de câncer no pulmão, impotência sexual ou não sei que males da gengiva.
Desconfio um pouco da eficácia dessas mensagens. As fotos não são das mais chocantes. Quem sabe até poderia haver uma escala de radicalidade: os maços de cigarro "light" teriam fotos mais suaves e, conforme a dosagem de alcatrão e nicotina, chegaríamos a cenas de verdadeiro horror.
Em todo caso, li que a idéia das fotos antitabagistas poderá ser adotada em outros países. Provavelmente o que conta não é o susto provocado pelas imagens no consumidor -que já comprou o maço de qualquer jeito-, mas a vergonha de continuar fumando com aquela foto à sua frente. Acredito que tenha menos medo do câncer do que de ser chamado de burro.
Há quem desenvolva estratégias para não ver as fotos: enfia uma nota fiscal entre a foto e o celofane, coloca o isqueiro por cima... Nada ilustra melhor a própria idéia do vício. O vício não nasce da ignorância, da desinformação, mas do seu contrário. É o desejo de conhecer o mal (e de esconder-se desse conhecimento) o que está de fato em jogo. Não foi por falta de advertência que Eva quis provar do fruto proibido.
Em "O Natimorto", extraordinário livro de Lourenço Mutarelli que acaba de ser lançado pela editora DBA, o personagem principal (chamado apenas de "O Agente") constrói uma relação bizarra com as figuras que encontra nos maços. Usa-as para prever o futuro, associando-as às diversas cartas do tarô.
Eis um exemplo do seu método: "No maço, um homem sufocado afrouxa a gravata. "Quem fuma não tem fôlego para nada." O Enforcado, lâmina 12. Abandono. Reversão da mente e da maneira de viver." Cito sem reproduzir a disposição das frases ao longo da página, cadenciadas como se fossem versos. As associações feitas pelo personagem são cada vez mais remotas e não esclarecem muito sobre a evolução da narrativa.
A foto do casal na cama, avisando que o fumo causa impotência, é interpretada como a carta 18 do tarô, a Lua: "Dois cães uivam enquanto bebem lágrimas lunares. Sob eles, um lençol de água. Na água, uma criatura, dizem, o escorpião. A Lua é cortada, e não vemos a parte superior. No maço, dois seres humanos. (...) Na parte inferior da imagem, um lençol cobre seus órgãos genitais. Na parede azul, como o céu, vemos ao centro um detalhe da moldura de um quadro que não vemos. A Lua."
Lourenço Mutarelli é autor premiado de histórias em quadrinhos. Essa sua experiência na prosa de ficção não é bem um romance: a narrativa se organiza em diálogos, intercalados por pequenos trechos em "verso", como os que acabo de citar. Os diálogos, entre "O Agente" e outra personagem, uma cantora chamada "A Voz", seguem um ritmo muito particular, pois as falas de um e de outro não se alternam regularmente, como numa entrevista pingue-pongue ou nas rubricas de uma peça de teatro. Demoramos para perceber que o texto de Mutarelli está na verdade mais próximo do roteiro de uma história em quadrinhos, cujos desenhos, entretanto, não serão revelados ao leitor.
Temos só as falas, não as imagens: ao mesmo tempo, o livro gira em torno da interpretação (obscura, inquietante, inconclusiva) de figuras, de fotos e de arcanos.
Estamos próximos da poética surrealista, não no que tenha de mais folclórico e exterior -delírio, verborragia, freudianismo vulgar- mas pelo seu lado mais insolúvel, hipnótico e vampiresco.
Quem foi à exposição de arte dadá e surrealista no Instituto Tomie Ohtake (em cartaz até 28 de novembro) pôde certamente experimentar, diante de obras como as de Man Ray ou de Max Ernst, uma sensação de angústia, de humor e de silêncio muito intensa, que parece transcender o que o surrealismo tinha de mais imediatamente provocador. É como se muitas obras daquela exposição tivessem energia própria; assemelham-se, de fato, a máquinas destinadas a gerar não se sabe bem o quê, e é esse "não-saber", essa insciência, que se implanta em nosso espírito, inquietante e corrosiva, como uma semente de morte.
Como um câncer, talvez, ou como um feto ameaçador e indecifrável, que todos temos dentro de nós mesmos. É esse o universo mental de "O Natimorto", que se expressa, entretanto, numa forma despojada, econômica, sem nenhuma gesticulação feérica.
A história do livro segue uma psicologia clássica e um roteiro bastante claro: acompanhamos um caso de amor que começa e que termina, entre um caça-talentos e uma cantora. Pormenores estranhos se entreabrem, contudo, a cada página. A voz da cantora tem a peculiaridade de ser inaudível. Uma história estranha é contada e recontada, com variações cada vez mais cruéis: fala-se de um monstro que existe no fundo de um poço e que, ao ser encontrado, nada mais é do que a nossa face refletida na água.
"Tu és isto" ("Tat tvam asi"): a frase da sabedoria oriental é citada em "O Natimorto". O livro de Mutarelli também funciona para nós como um espelho, ao mesmo tempo profundo, luminoso e impenetrável. Na tradição de Rimbaud e dos surrealistas -cujo interesse pelo ocultismo e pelo tarô é bastante conhecido-, a literatura se afirma aqui como um ato de vidência. Não se trata de ocultismo, entretanto, mas, sim, de revelação.


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