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"O DIA EM QUE O BRASIL ESTEVE AQUI"
Show de futebol não afasta velho pavor do Haiti
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Cena do documentário "O Dia em que o Brasil Esteve Aqui" |
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
Ronaldo não é Henri Cristophe, mas teve seus momentos de rei do Haiti. Em "O Dia em
que o Brasil Esteve Aqui", o craque aparece em uma dimensão
impressionante mesmo para um
espectador brasileiro, orgulhoso
de seu "país do futebol". Mas o filme, feito para registrar os efeitos
da histórica passagem da seleção
de futebol do Brasil pelo Haiti, em
agosto de 2004, na verdade pode
ser visto como um incômodo
lembrete de como o país antilhano continua a ser um espectro a
rondar o horizonte brasileiro.
Há pouco mais de 200 anos, o
Haiti tornava-se a primeira nação
negra independente das Américas. A revolução, cuja violência
deixou marcas históricas, sacudiu
o imaginário da elite brasileira da
época, temerosa que o 1,5 milhão
de escravos do país se inspirasse
nos haitianos. "Haitianismo" virou nome de crime e pesadelo no
Brasil. Os dois séculos de lá até
aqui não parecem ter mudado essencialmente essa relação.
No documentário, a seleção
brasileira aparece como representante do que há de mais significativo da cultura nacional, coisa capaz de enlouquecer os países por
onde passa, sobretudo os mais
pobres. Na véspera do amistoso
contra o Haiti, soldados brasileiros distribuíram nas ruas camisetas amarelas, disputadas como se
fossem sacos de comida. Um jornalista haitiano sugere que esse é
o autêntico "soft power", isto é, o
poder de conquistar corações e
mentes por meios persuasivos.
Mas os astros dessa poderosa
trupe são endinheirados exilados
na fria Europa, e seu traço negro é
só uma pálida lembrança dos 400
anos de escravidão no Brasil. Em
cima de carros blindados da
ONU, desfilaram pelas ruas de
Porto Príncipe como imperadores em meio a uma inacreditável
multidão de miseráveis súditos
que se empilharam para ter o privilégio de ver seus deuses por uma
fração de segundo, se tanto.
A seleção, símbolo de um Brasil
cuja identidade foi construída no
passado recente em cima da lenda
da democracia racial, manteve
um prudente distanciamento
dessa massa negra informe. Sob
forte proteção, o time chegou, entrou em campo, goleou e foi embora, sem maior envolvimento, o
que causou uma mal disfarçada
frustração entre os haitianos.
O comando militar brasileiro
alegou que a visita da seleção foi
rápida para evitar tumultos que
poderiam converter-se em violência. Mas, no limite, talvez tenha
sido medo de contaminação, o velho pavor da elite brasileira.
Ao final do documentário, o
que se impõe não é a força do futebol nem o acerto da iniciativa
brasileira, e sim uma incômoda
pergunta: quanto falta para sermos o Haiti?
O Dia em que o Brasil Esteve
Aqui
Direção: Caíto Ortiz e João Dornelas
Quando: hoje, às 19h40, no Reserva
Cultural
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