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CARLOS HEITOR CONY
Relendo Machado
Ele só escreveu sobre a sua aldeia, o Rio, mas atingiu não apenas o universal como o eterno
BEM, O fim de semana me prendeu em casa. Gosto desses
dias, sem compromisso com
nada e ninguém. Fui às estantes lá
de casa e olhei, também sem compromisso, as lombadas todas. Gradualmente, fui me fixando em velhos livros que me acompanham há
muito tempo, desde as minhas primeiras estantes. Sim, lá estavam
elas, as obras completas de Machado
de Assis, que não visito há muito.
Alguns daqueles livros já foram lidos e relidos, e regularmente consultados para fins de pesquisa ou encomenda de trabalho. Agora não: a
disponibilidade era integral, a minha e a dos livros.
Fechei os olhos para escolher ao
acaso; a mão trouxe as "Memórias
Póstumas de Brás Cubas", seguramente o livro de Machado que mais
li e reli, depois de "Dom Casmurro".
Deitei-me no sofá e comecei pela famosa dedicatória ao verme, que por
primeiro roeu as frias carnes do seu
cadáver.
Os capítulos são espaçados graficamente, a leitura é fácil, facílima
em alguns casos, como no trecho em
que o autor explica por que e como
não chegou a ministro de Estado:
são apenas quatro linhas de reticências, sem nenhuma palavra escrita.
Há também o extraordinário diálogo entre Virgilia e Brás Cubas, em
que só existem reticências e pontos
de interrogação e exclamação. No
entanto, nunca houve diálogo mais
explícito (de sexo implícito, para ser
bem explícito) do que essa maravilha da criação. E fui revisitando lugares e sombras, até o final igualmente famoso: "não tive filhos, não
transmiti para nenhuma outra criatura o legado de nossa miséria".
Do Brás Cubas pulei para o "Quincas Borba", seguimento natural do
primeiro. Foi como se ouvisse uma
ópera, da qual conhecesse passagens
de cor. Praticamente, de duas em
duas páginas, esbarrava nos trechos
que havia decorado nas velhas antologias de antigamente; a cena de Rubião olhando as estrelas, o empregado espanhol chamando Quincas
Borba de "perro del infierno", os
pensamentos do cão, a "memória
das pancadas", a teoria do campo de
batatas, da qual resultou a divisa "ao
vencedor as batatas!" -que rola em
vários trechos da narrativa, podendo até servir de epígrafe não apenas
ao "Quincas Borba" isoladamente,
mas a toda a obra maior de Machado
de Assis.
Enfim, quando dei por mim, já a
luz da segunda-feira desenhava o
contorno da Lagoa em frente à minha varanda e eu descobria que havia varado a tarde e a noite na leitura
de um livro que, lido pela quarta ou
quinta vez, eu podia considerar
meu. Meu mesmo, não em termos
de glória ou façanha, mas no sentido
de propriedade, de adequação, tão
meu como a minha vida, meus fracassos e lutas, meu tempo que está
passando, meu gosto, minha carne,
minhas lágrimas.
Evidente que Machado não vale
nada como autor de enredos: suas
histórias são sempre as mesmas, e
mesmas as intrigas, o ambiente, até
mesmo os personagens.
Ele se tornou o nosso maior escritor não por meio dos enredos, mas
pela maneira como conduziu a única história que pretendeu contar: a
da miséria humana em seu todo o
seu esplendor e decadência.
Tchecov dizia: "escreva sobre a
tua aldeia e descreverás o mundo".
Machado escreveu apenas sobre a
sua aldeia, o Rio de seu tempo, mas
atingiu não apenas o universal, mas
o eterno. A loucura de Rubião é a
loucura de todos nós, quando estamos suficientemente lúcidos.
Moral da história: perguntei uma
vez a Francisco Mignone qual era o
seu compositor preferido. Ele respondeu que, aos 20 anos, era Bach;
aos 40, era Beethoven; aos 60, era
Puccini. Entendi o que ele queria dizer: na idade madura, não devia nada a ninguém e podia expressar o
que realmente sentia.
Cito esse episódio em causa própria e a respeito de Machado: aos 20
anos, meu romance preferido era
"Dom Casmurro"; aos 40, passei a
preferir "Brás Cubas". Na idade madura, o meu preferido é "Quincas
Borba". Gosto, sobretudo, do cão
que também se chamava Quincas
Borba. É um dos melhores personagens da novelística internacional.
Quando tomei posse na Academia
Brasileira de Letras, iniciei e terminei o meu discurso com um pensamento que Machado colocou na cabeça do cão: "a vida não é completamente boa nem completamente
má". E Machado acrescenta que isso
é um pensamento de um cão, "uma
poeira de idéias".
E tem aquela maravilha do jornalista Camacho, que é muito atual nos
tempos atuais: "Cada partido tem
seus díscolos e sicofantas".
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