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Crítica/"Sete Narrativas Góticas"
Blixen cria jogo de máscaras para revelar sua identidade
Obra da autora dinamarquesa revisita período que segue a Revolução Francesa
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Escritora singular na literatura do século 20, a
dinamarquesa Karen
Blixen sempre se equilibrou
entre duas realidades.
Filha de uma família abastada de Rungsted, abandonou a
cultura européia para viver na
África, onde permaneceu até a
meia-idade em meio ao que ela
descreve como o vasto silêncio
do continente.
Colonizadora, dona de uma
fazenda de café no Quênia da
qual cuidou até se ver na bancarrota, defendeu o direito dos
nativos pelas terras que lhe foram usurpadas. "Quando lhes
retiramos aquelas coisas que
estão acostumados a ver, e esperam continuar vendo, é como se, de certo modo, lhes retirássemos os olhos", disse numa
petição ao governo.
Casou-se com um barão sueco, que lhe transmitiu o título
junto da sífilis, de cujas conseqüências padeceu a vida inteira. Sua biografia (parte da qual
descrita em "A Fazenda Africana", levada às telas no filme
"Entre Dois Amores") quase
sufocou a carreira literária. Seu
primeiro livro - justamente
este "Sete Narrativas Góticas"- foi lançado quando ela tinha 49 anos.
A obra foi redigida em inglês,
língua que adotou para criar a
maioria dos seus livros, só depois recriados em sua língua
materna. No entanto, de acordo com o crítico Per Johns, que
assina o posfácio desta edição,
Karen não passava de uma autora mediana em inglês. Só em
dinamarquês tornou-se "exímia cultora de um estilo único e
inconfundível".
Como escritora, adotou o
pseudônimo de Isak Dinesen
-só parcialmente inventado, já
que Dinesen era seu nome de
família. A alcunha masculina
combina com o motivo da ambigüidade sexual e do travestismo que surge em várias das novelas deste livro. Muitas vezes,
os personagens femininos são
confundidos com homens-
por acidente ou pelos trajes.
O escamoteio da identidade
sexual está ligado, nestas histórias, num plano menor, ao tema
da máscara e, num maior, à
própria forma como essas fábulas se engendram.
Tradicionalmente, as máscaras servem para escamotear
identidades, mas, em Dinensen, elas podem revelar a real
natureza. "É pela máscara que
se conhece a pessoa", afirma o
cardeal de "O Dilúvio de Norderney", que, depois se descobre, não é quem se pensa que é.
O jogo do disfarce, que, por
tanto disfarçar, acaba tornando-se verdade, sugere procedimentos modernos, mas as narrativas de Blixen, até pelo título, arrogam o direito de servir-se de modelos antigos.
O termo "gótico", derivado
da versão em inglês, remete a
uma literatura anterior ao realismo do século 19, um tipo de
relato romântico, avesso à verossimilhança, cheio de reviravoltas, digressões, histórias
dentro de histórias, enredos
mirabolantes e de matéria que
se avizinha do sobrenatural.
Assim, a maioria destas narrativas se passa no início do século 19, logo após a Revolução
Francesa e as Guerras Napoleônicas. Ou seja, com a ascensão da burguesia. Naqueles primórdios, porém, ainda se encontravam personagens empoados, metidos em perucas,
que naturalmente se batiam
em duelos.
O choque entre a burguesia
nascente e a aristocracia caduca, vista com simpatia mas sem
o descuido de seus aspectos esdrúxulos, é o motor das histórias. Blixen parece dividir-se,
pois o formato de suas narrativas de fato forma um elo passadista com a ordem moritura,
mas o contraste irônico, a ambigüidade e o componente alegórico as remetem a algo mais
próximo de Kafka e de Borges.
A literatura de Karen Blixen
foi taxada de alienada e de
exemplo de "arte pela arte". Cabe aos leitores resolver mais esse dilema -e não se trata de
uma tarefa árdua, dada a sedutora legibilidade que emana de
suas páginas.
SETE NARRATIVAS GÓTICAS
Autor: Karen Blixen
Tradução: Claudio Marcondes
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 65 (478 págs.)
Avaliação: ótimo
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