São Paulo, sábado, 03 de novembro de 2007

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Crítica/"Sete Narrativas Góticas"

Blixen cria jogo de máscaras para revelar sua identidade

Obra da autora dinamarquesa revisita período que segue a Revolução Francesa

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Escritora singular na literatura do século 20, a dinamarquesa Karen Blixen sempre se equilibrou entre duas realidades.
Filha de uma família abastada de Rungsted, abandonou a cultura européia para viver na África, onde permaneceu até a meia-idade em meio ao que ela descreve como o vasto silêncio do continente.
Colonizadora, dona de uma fazenda de café no Quênia da qual cuidou até se ver na bancarrota, defendeu o direito dos nativos pelas terras que lhe foram usurpadas. "Quando lhes retiramos aquelas coisas que estão acostumados a ver, e esperam continuar vendo, é como se, de certo modo, lhes retirássemos os olhos", disse numa petição ao governo.
Casou-se com um barão sueco, que lhe transmitiu o título junto da sífilis, de cujas conseqüências padeceu a vida inteira. Sua biografia (parte da qual descrita em "A Fazenda Africana", levada às telas no filme "Entre Dois Amores") quase sufocou a carreira literária. Seu primeiro livro - justamente este "Sete Narrativas Góticas"- foi lançado quando ela tinha 49 anos.
A obra foi redigida em inglês, língua que adotou para criar a maioria dos seus livros, só depois recriados em sua língua materna. No entanto, de acordo com o crítico Per Johns, que assina o posfácio desta edição, Karen não passava de uma autora mediana em inglês. Só em dinamarquês tornou-se "exímia cultora de um estilo único e inconfundível".
Como escritora, adotou o pseudônimo de Isak Dinesen -só parcialmente inventado, já que Dinesen era seu nome de família. A alcunha masculina combina com o motivo da ambigüidade sexual e do travestismo que surge em várias das novelas deste livro. Muitas vezes, os personagens femininos são confundidos com homens- por acidente ou pelos trajes.
O escamoteio da identidade sexual está ligado, nestas histórias, num plano menor, ao tema da máscara e, num maior, à própria forma como essas fábulas se engendram.
Tradicionalmente, as máscaras servem para escamotear identidades, mas, em Dinensen, elas podem revelar a real natureza. "É pela máscara que se conhece a pessoa", afirma o cardeal de "O Dilúvio de Norderney", que, depois se descobre, não é quem se pensa que é.
O jogo do disfarce, que, por tanto disfarçar, acaba tornando-se verdade, sugere procedimentos modernos, mas as narrativas de Blixen, até pelo título, arrogam o direito de servir-se de modelos antigos.
O termo "gótico", derivado da versão em inglês, remete a uma literatura anterior ao realismo do século 19, um tipo de relato romântico, avesso à verossimilhança, cheio de reviravoltas, digressões, histórias dentro de histórias, enredos mirabolantes e de matéria que se avizinha do sobrenatural.
Assim, a maioria destas narrativas se passa no início do século 19, logo após a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas. Ou seja, com a ascensão da burguesia. Naqueles primórdios, porém, ainda se encontravam personagens empoados, metidos em perucas, que naturalmente se batiam em duelos.
O choque entre a burguesia nascente e a aristocracia caduca, vista com simpatia mas sem o descuido de seus aspectos esdrúxulos, é o motor das histórias. Blixen parece dividir-se, pois o formato de suas narrativas de fato forma um elo passadista com a ordem moritura, mas o contraste irônico, a ambigüidade e o componente alegórico as remetem a algo mais próximo de Kafka e de Borges.
A literatura de Karen Blixen foi taxada de alienada e de exemplo de "arte pela arte". Cabe aos leitores resolver mais esse dilema -e não se trata de uma tarefa árdua, dada a sedutora legibilidade que emana de suas páginas.


SETE NARRATIVAS GÓTICAS
Autor: Karen Blixen
Tradução: Claudio Marcondes
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 65 (478 págs.)
Avaliação: ótimo



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