São Paulo, terça-feira, 03 de dezembro de 2002

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MÚSICA ERUDITA

Elisa Freixo em pleno coração da Cravolândia

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Já que a gente não vai a Mariana -escutar o lindo órgão alemão barroco da Sé-, Mariana vem a São Paulo, na figura de Elisa Freixo, que tocou domingo à tarde na série da Pinacoteca. Não tocou órgão, por motivos óbvios, mas cravo: um lindo cravo brasileiro moderno, construído por William Takahashi.
E foi assim que o estupendo e imprevisível gênio de Johann Jacob Froberger (1616-67) veio mais uma vez à luz, ou mais precisamente à Luz, no coração da Cracolândia.
O compositor teria apreciado a ironia: viveu uma vida aventurosa, viajando muito, e foi um dos mais "românticos" dos compositores do século 17, mais próximo em espírito de poetas como Chatterton ou Gérard de Nerval do que de seu descendente musical J. S. Bach (1685-1750). Para não falar de Georg Böhm (1661-1733), outro precursor de Johann Sebastian, compondo o tripé alemão do programa de Elisa Freixo.
Alemães de nascença, franco-italianos na música. Froberger, que estudou com Frescobaldi, tende mais para a Itália. Mesmo uma intérprete tão serena como Freixo parece ter Chianti nas veias quando começa a mudar de tempo quaternário para ternário no "Capriccio".
Já Böhm era mais da França, e parece distintamente sob a influência de são Cabernet quando modula de maior para menor no final da primeira parte da "Sarabande", da "Suíte em Fá Maior". Prazer que se redobra na "Double". Depois disso, dá para aceitar que ele seja o autor do exuberante "Capriccio" em três partes, que encerrou a primeira parte do concerto sem intervalo.
Dali para a frente, foi Bach: primeiro o Bach italiano, transcrevendo para cravo o "Concerto" para oboé de Alessandro Marcello (1684-1750), com o irresistível "Adagio" lindamente dividido por Elisa Freixo nos dois teclados. Depois o francês, na "Sarabande com Partite", inspirada em Lully. (A autoria, aliás, é disputada, mas não importa. Errinhos, aqui e ali: também não tem a menor importância.)
"Partite" é plural de "partita"; o que os ingleses da época chamavam de "divisions" e, em português, se diz "variações". Freixo tocou sete das 16: o bastante para mostrar como se toca música polifônica mantendo o interesse vivo em todas as vozes.
Tudo isso convergiu para a "Toccata em Mi Menor", obra da juventude de Bach, anterior a 1708, que já deixa mais do que claro de quem se trata. Todos os outros ficam imediatamente diminuídos -mas também justificados- por esse rio de música, que absorve e carrega os afluentes para o incompreensível mar.
O Takahashi vibrava sob a sequência de acordes cheios de notas. A pequena sala da Pinacoteca transformou-se, por alguns minutos, no próprio coração da Cravolândia.
E Elisa Freixo tão calma, com uma tranquilidade que só quem já esteve em Mariana pode começar a entender.
(Em tempo: acaba de sair, pela Paulus, um CD com Freixo interpretando Bach, Böhm e outros alemães no órgão Arp Schnitger de Minas, e compositores espanhóis e portugueses no Schnitger de Faro, Portugal.)
Fazer música, para ela, não parece diferente de qualquer outra atividade, acessível a qualquer um de nós.
E no entanto, com toda sua discrição, com toda sua modéstia, ela segue sendo uma das maiores artistas do Brasil.


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