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MÚSICA ERUDITA
Elisa Freixo em pleno coração da Cravolândia
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Já que a gente não vai a Mariana -escutar o lindo órgão alemão barroco da Sé-, Mariana
vem a São Paulo, na figura de Elisa
Freixo, que tocou domingo à tarde na série da Pinacoteca. Não tocou órgão, por motivos óbvios,
mas cravo: um lindo cravo brasileiro moderno, construído por
William Takahashi.
E foi assim que o estupendo e
imprevisível gênio de Johann Jacob Froberger (1616-67) veio mais
uma vez à luz, ou mais precisamente à Luz, no coração da Cracolândia.
O compositor teria apreciado a
ironia: viveu uma vida aventurosa, viajando muito, e foi um dos
mais "românticos" dos compositores do século 17, mais próximo
em espírito de poetas como Chatterton ou Gérard de Nerval do
que de seu descendente musical J.
S. Bach (1685-1750). Para não falar
de Georg Böhm (1661-1733), outro precursor de Johann Sebastian, compondo o tripé alemão do
programa de Elisa Freixo.
Alemães de nascença, franco-italianos na música. Froberger,
que estudou com Frescobaldi,
tende mais para a Itália. Mesmo
uma intérprete tão serena como
Freixo parece ter Chianti nas veias
quando começa a mudar de tempo quaternário para ternário no
"Capriccio".
Já Böhm era mais da França, e
parece distintamente sob a influência de são Cabernet quando
modula de maior para menor no
final da primeira parte da "Sarabande", da "Suíte em Fá Maior".
Prazer que se redobra na "Double". Depois disso, dá para aceitar
que ele seja o autor do exuberante
"Capriccio" em três partes, que
encerrou a primeira parte do concerto sem intervalo.
Dali para a frente, foi Bach: primeiro o Bach italiano, transcrevendo para cravo o "Concerto"
para oboé de Alessandro Marcello
(1684-1750), com o irresistível
"Adagio" lindamente dividido
por Elisa Freixo nos dois teclados.
Depois o francês, na "Sarabande
com Partite", inspirada em Lully.
(A autoria, aliás, é disputada, mas
não importa. Errinhos, aqui e ali:
também não tem a menor importância.)
"Partite" é plural de "partita"; o
que os ingleses da época chamavam de "divisions" e, em português, se diz "variações". Freixo tocou sete das 16: o bastante para
mostrar como se toca música polifônica mantendo o interesse vivo em todas as vozes.
Tudo isso convergiu para a
"Toccata em Mi Menor", obra da
juventude de Bach, anterior a
1708, que já deixa mais do que claro de quem se trata. Todos os outros ficam imediatamente diminuídos -mas também justificados- por esse rio de música, que
absorve e carrega os afluentes para o incompreensível mar.
O Takahashi vibrava sob a sequência de acordes cheios de notas. A pequena sala da Pinacoteca
transformou-se, por alguns minutos, no próprio coração da Cravolândia.
E Elisa Freixo tão calma, com
uma tranquilidade que só quem já
esteve em Mariana pode começar
a entender.
(Em tempo: acaba de sair, pela
Paulus, um CD com Freixo interpretando Bach, Böhm e outros
alemães no órgão Arp Schnitger
de Minas, e compositores espanhóis e portugueses no Schnitger
de Faro, Portugal.)
Fazer música, para ela, não parece diferente de qualquer outra
atividade, acessível a qualquer um
de nós.
E no entanto, com toda sua discrição, com toda sua modéstia, ela
segue sendo uma das maiores artistas do Brasil.
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