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São Paulo, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003

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CINEMA

Mostra na Sala Cinemateca reúne 11 produções em que a música torna-se parte independente da narrativa

Ciclo celebra o divórcio entre som e imagem

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

"Atenção , agora você tem que se emocionar": eis o papel da música no esquema do cinema narrativo clássico. Ela age como uma espécie de lubrificador da psique. A música nunca se livrou dessa função, mas também ganhou, ao longo da história do cinema, um novo status, o de um signo sonoro puro, independente. A história dessa insurgência pode-se acompanhar na mostra "O Cinema Musical e Seus Vários Compassos", na Cinemateca.
De "Cantando na Chuva" a "Uma Mulher É uma Mulher", o cerne dessa história está um pouco aí, na influência exercida pelo gênero musical hollywoodiano no cinema moderno, na nouvelle vague em especial. Os filmes modernos devem aos musicais americanos tanto a abstração espacial, o puro espaço de convenção em que se operam, quanto a especificidade do plano musical e, portanto, sonoro. Em filmes como "Uma Mulher É uma Mulher", apropriação godardiana da comédia musical, consuma-se o divórcio entre som e imagem, entre música e ação, anunciado pelos números musicais dos grandes filmes do gênero hollywoodiano.
Era o que já preconizava Bertolt Brecht nos anos 40: antes de servir para enlaçar os acontecimentos, a música deveria ganhar autonomia. Um dos problemas da música no cinema, dizia Brecht, é que o compositor só é chamado depois do filme pronto. Chamá-lo depois é legar à música uma função meramente ilustrativa, reduzindo e enfatizando redundantemente o significado da imagem -redundância que encontra sua expressão mais irônica nas escalas musicais ascendentes que Lubitsch usava para acompanhar seus personagens subindo escadas.
Descolar a música da imagem é quase um projeto da primeira fase da obra de Godard. Em "Uma Mulher É uma Mulher", ele libera a música enquanto ruído. A verdadeira vedete do filme, diria Jacques Aumont, é a descontinuidade sonora. As rupturas de tom nos informam sobre a descontinuidade do comportamento dos personagens; a própria dança não entra senão como um momento nesse comportamento, um acidente. Anna Karina dança porque quer se sentir como Cyd Charisse em um musical de Vincent Minnelli, mas Godard só retém de sua coreografia os pontos culminantes, como que alvejando a comédia musical com o fuzil fotográfico inventado por Marey.
Se Godard chama seu filme de "musical neo-realista" é porque o real corrói ali o sonho de evasão caro aos musicais clássicos. No pós-guerra, da fábrica de sonhos da velha Hollywood só resta certa nostalgia. Eis a verdadeira fábrica a que se refere Lars Von Trier em "Dançando no Escuro", outra atração da mostra. Trier faz uma leitura pop-marxista do musical americano, centrando-se na alienação (cegueira) de uma Björk proletária. É dogmático, mas em amplos sentidos.


O CINEMA MUSICAL E SEUS VÁRIOS COMPASSOS. Onde: Sala Cinemateca (lgo. Senador Raul Cardoso, 207, SP, tel. 0/xx/ 11/5084-2318). Quando: de hoje a 13/12. Quanto: R$ 8.


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