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MARCELO COELHO
O fatalismo sertanejo atualizado
Passamos por algumas semanas quase sertanejas em
São Paulo: represas secas, racionamento em alguns bairros, rezas
para que chovesse. Mas como
aqui é muito mais terra de enchentes do que da garoa, parece
que já se normaliza o regime pluviométrico: da sala onde escrevo,
vejo as nuvens que chegam e as
chuvas que já estão caindo lá pelos lados da Cantareira. Tudo parece um cinema.
"Há certas coisas no mundo",
diz o poeta nordestino Manoel
Chudu, "Que eu olho e fico surpreso:/ Uma nuvem carregada/ Se
sustentar com o peso,/ E dentro de
um bolo d'água/ Sair um corisco
aceso".
Esses versos são declamados de
modo furioso e triunfal num disco
que acabaram de me emprestar,
"O Palhaço do Circo sem Futuro".
É o segundo CD do Cordel do Fogo Encantado, grupo de maracatu originário da cidade de Arco
Verde, no sertão pernambucano.
Digo "grupo de maracatu" sem
muita certeza, porque esse termo
dá idéia de uma coisa muito folclórica e tradicional. A música do
Cordel do Fogo Encantado, ao
contrário, é uma pauleira só e
mistura aboios e repentes com
uma parafernália eletrônica bem
assustadora para o meu gosto
clássico.
Pego a faixa "O Espetáculo".
Começa com a voz de Lirinha,
poeta, músico, líder da banda, declamando a seco seus próprios
versos: "Aqui do alto do cruzeiro/
Onde o vento faz curva para voltar com mais coragem/ vejo o Sol
tocando a ponta do pára-raio da
cruz". Lembra, com seus presságios, alguns versos de Augusto dos
Anjos.
Logo surge um fundo de percussão rústica e efeitos de zumbido
eletrônico, enquanto Lirinha vai
elevando a voz, brigando com o
que parece barulho de chuva, música de desfile de Carnaval, vozerio popular, som longínquo de sirene de polícia, e é então que os
versos de Manoel Chudu citados
acima aparecem como numa câmara de eco e se ligam à faixa seguinte, "Vou Saquear a Tua Feira".
O grupo berra, como se estivesse
usando o megafone de uma manifestação de sindicato, outros
versos de Lirinha: "Vou saquear a
tua feira/ Rasgar a capa do teu
peito/ Cercar de arame a tua boca/ Botar garrancho no teu pé". A
batucada se mistura a alguma
coisa que pode ser o acesso de fúria de uma viola repentista ou o
rasgueio de uma guitarra flamenca -e também não sei se os versos são uma declaração de amor
ou um grito de guerra. As duas
coisas, talvez.
Ao falar da amada ausente, Lirinha não é nada sentimental:
"Quando a Saudade chegar/ Com
seu batalhão de agitadores/ E
tanta bandeira/ Vou cantar/
Aquele som da gente/ Vou rasgar/
O teu vestido novo". Vozes masculinas gritam isso num estado de
desespero e ameaça, até que a letra termine abrupta, no meio de
ventanias, martelos, batidas de
lata, guizos de cabra.
Lirinha também declama versos de João Cabral de Melo Neto:
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato (...)
comeu meu peso, a cor de meus
olhos e de meus cabelos. O amor
comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu
inverno e meu verão. Comeu meu
silêncio, minha dor de cabeça,
meu medo da morte".
Atrás da voz de Lirinha, novos
ruídos e mixagens, como uma floresta que se desbasta, papel amassado, choque de bolas de bilhar,
palmas, passos num corredor, ruídos, folha de estanho, coisas que
caem por terra. E o disco todo parece ser a celebração de uma
grande queda -a começar pela
primeira faixa, "Os Anjos Caídos", em que é o próprio Lúcifer
quem toma a palavra.
Guerra e fogo, seca e chuva, trovão e sede são palavras que aparecem em quase todas as músicas
do disco: "Acorda, levanta, resolve/ há uma guerra no nosso caminho (...) nas veredas estreitas do
universo. (...) Escuto/ o trovão que
escapou/ as ladainhas das mulheres secas".
Os efeitos moderníssimos da
manipulação eletrônica acentuam a sensação de fim de mundo, de exasperação milenarista.
Mais do que a eletrizante poesia
de algumas letras do disco, é nesse
jogo entre o tradicional e o contemporâneo que está, me parece,
a maior originalidade do Cordel
do Fogo Encantado.
No século 20, o choque entre o
mundo moderno e o Brasil tradicional tendia a ser explorado como algo de cômico, de bizarro, de
pitoresco. Em suas análises do
tropicalismo e da poesia de Oswald de Andrade, o crítico Roberto Schwarz esclareceu como funciona esse recurso, em que a incompatibilidade do arcaico e do
moderno é ao mesmo tempo objeto de sarcasmo e de celebração.
No caso do Cordel do Fogo Encantado, a trilha eletrônica e os
sons tradicionais se superpõem
sem ironia, sem distanciamento.
Uma coisa não "supera" a outra,
e não há nenhum futuro à vista.
A globalização e a eletrônica parecem apenas conferir mais voltagem, mais angústia, a um quadro
de desespero secular. Um verso de
Lirinha fala justamente nas "cercas velhas de arame novo". Arame eletrificado, sem dúvida.
O mito da revolução camponesa e a crença messiânica no Reino
do Divino como que se equalizam, e a expectativa de uma derrubada do sistema é também a
reza para que venha a chuva, numa espécie de cataclismo cósmico
e social.
Numa época de utopias em baixa, o espírito de resignação, o fatalismo sertanejo parecem assim
atualizar-se bruscamente. Afinal,
quem fala em seca, chuva, fogo,
castigo divino e fim do mundo
não está empregando vocabulário muito diverso dos economistas
que esperam a retomada dos investimentos e têm medo do próximo ataque especulativo.
Os dogmas religiosos hoje estão
incorporados à linguagem serena
dos analistas financeiros. As letras do Cordel do Fogo Encantado -mesmo as de amor- parecem, ao contrário, cantadas por
fanáticos; mas fanáticos que perderam o dogma. A barulhada
magnífica desse disco é um grito
de desespero, de ódio, de guerra
-mas uma guerra em que o inimigo ficou invisível, atrás de um
redemoinho de fogo e pó.
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