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São Paulo, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003

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MARCELO COELHO

O fatalismo sertanejo atualizado

Passamos por algumas semanas quase sertanejas em São Paulo: represas secas, racionamento em alguns bairros, rezas para que chovesse. Mas como aqui é muito mais terra de enchentes do que da garoa, parece que já se normaliza o regime pluviométrico: da sala onde escrevo, vejo as nuvens que chegam e as chuvas que já estão caindo lá pelos lados da Cantareira. Tudo parece um cinema.
"Há certas coisas no mundo", diz o poeta nordestino Manoel Chudu, "Que eu olho e fico surpreso:/ Uma nuvem carregada/ Se sustentar com o peso,/ E dentro de um bolo d'água/ Sair um corisco aceso".
Esses versos são declamados de modo furioso e triunfal num disco que acabaram de me emprestar, "O Palhaço do Circo sem Futuro". É o segundo CD do Cordel do Fogo Encantado, grupo de maracatu originário da cidade de Arco Verde, no sertão pernambucano.
Digo "grupo de maracatu" sem muita certeza, porque esse termo dá idéia de uma coisa muito folclórica e tradicional. A música do Cordel do Fogo Encantado, ao contrário, é uma pauleira só e mistura aboios e repentes com uma parafernália eletrônica bem assustadora para o meu gosto clássico.
Pego a faixa "O Espetáculo". Começa com a voz de Lirinha, poeta, músico, líder da banda, declamando a seco seus próprios versos: "Aqui do alto do cruzeiro/ Onde o vento faz curva para voltar com mais coragem/ vejo o Sol tocando a ponta do pára-raio da cruz". Lembra, com seus presságios, alguns versos de Augusto dos Anjos.
Logo surge um fundo de percussão rústica e efeitos de zumbido eletrônico, enquanto Lirinha vai elevando a voz, brigando com o que parece barulho de chuva, música de desfile de Carnaval, vozerio popular, som longínquo de sirene de polícia, e é então que os versos de Manoel Chudu citados acima aparecem como numa câmara de eco e se ligam à faixa seguinte, "Vou Saquear a Tua Feira".
O grupo berra, como se estivesse usando o megafone de uma manifestação de sindicato, outros versos de Lirinha: "Vou saquear a tua feira/ Rasgar a capa do teu peito/ Cercar de arame a tua boca/ Botar garrancho no teu pé". A batucada se mistura a alguma coisa que pode ser o acesso de fúria de uma viola repentista ou o rasgueio de uma guitarra flamenca -e também não sei se os versos são uma declaração de amor ou um grito de guerra. As duas coisas, talvez.
Ao falar da amada ausente, Lirinha não é nada sentimental: "Quando a Saudade chegar/ Com seu batalhão de agitadores/ E tanta bandeira/ Vou cantar/ Aquele som da gente/ Vou rasgar/ O teu vestido novo". Vozes masculinas gritam isso num estado de desespero e ameaça, até que a letra termine abrupta, no meio de ventanias, martelos, batidas de lata, guizos de cabra.
Lirinha também declama versos de João Cabral de Melo Neto: "O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato (...) comeu meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte".
Atrás da voz de Lirinha, novos ruídos e mixagens, como uma floresta que se desbasta, papel amassado, choque de bolas de bilhar, palmas, passos num corredor, ruídos, folha de estanho, coisas que caem por terra. E o disco todo parece ser a celebração de uma grande queda -a começar pela primeira faixa, "Os Anjos Caídos", em que é o próprio Lúcifer quem toma a palavra.
Guerra e fogo, seca e chuva, trovão e sede são palavras que aparecem em quase todas as músicas do disco: "Acorda, levanta, resolve/ há uma guerra no nosso caminho (...) nas veredas estreitas do universo. (...) Escuto/ o trovão que escapou/ as ladainhas das mulheres secas".
Os efeitos moderníssimos da manipulação eletrônica acentuam a sensação de fim de mundo, de exasperação milenarista. Mais do que a eletrizante poesia de algumas letras do disco, é nesse jogo entre o tradicional e o contemporâneo que está, me parece, a maior originalidade do Cordel do Fogo Encantado.
No século 20, o choque entre o mundo moderno e o Brasil tradicional tendia a ser explorado como algo de cômico, de bizarro, de pitoresco. Em suas análises do tropicalismo e da poesia de Oswald de Andrade, o crítico Roberto Schwarz esclareceu como funciona esse recurso, em que a incompatibilidade do arcaico e do moderno é ao mesmo tempo objeto de sarcasmo e de celebração.
No caso do Cordel do Fogo Encantado, a trilha eletrônica e os sons tradicionais se superpõem sem ironia, sem distanciamento. Uma coisa não "supera" a outra, e não há nenhum futuro à vista. A globalização e a eletrônica parecem apenas conferir mais voltagem, mais angústia, a um quadro de desespero secular. Um verso de Lirinha fala justamente nas "cercas velhas de arame novo". Arame eletrificado, sem dúvida.
O mito da revolução camponesa e a crença messiânica no Reino do Divino como que se equalizam, e a expectativa de uma derrubada do sistema é também a reza para que venha a chuva, numa espécie de cataclismo cósmico e social.
Numa época de utopias em baixa, o espírito de resignação, o fatalismo sertanejo parecem assim atualizar-se bruscamente. Afinal, quem fala em seca, chuva, fogo, castigo divino e fim do mundo não está empregando vocabulário muito diverso dos economistas que esperam a retomada dos investimentos e têm medo do próximo ataque especulativo.
Os dogmas religiosos hoje estão incorporados à linguagem serena dos analistas financeiros. As letras do Cordel do Fogo Encantado -mesmo as de amor- parecem, ao contrário, cantadas por fanáticos; mas fanáticos que perderam o dogma. A barulhada magnífica desse disco é um grito de desespero, de ódio, de guerra -mas uma guerra em que o inimigo ficou invisível, atrás de um redemoinho de fogo e pó.


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