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RODAPÉ
Vigiar e punir
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Escritor português nascido
em Angola, Gonçalo M. Tavares publicou de 2001 até hoje
mais de 15 livros, arrebatando diversas honrarias em seu país
-dentre as quais o Prêmio José
Saramago de 2005, pelo romance
"Jerusalém". Ao contrário do que
essa contabilidade editorial pode
sugerir, não se trata de uma obra
caudalosa, mas de uma produção
que se expande por volumes enxutos, em que chama a atenção
uma invulgar variedade de gêneros narrativos.
Correndo o risco de supervalorizar uma obra ainda em construção, pode-se dizer que Tavares tomou emprestado de Fernando
Pessoa a idéia de criar heterônimos, aplicando essa filosofia da
composição a modalidades de escrita que vão do romance à micronarrativa, do poema ao ensaio,
do aforismo ao teatro.
Assim como Pessoa inventa
máscaras autorais que implicam
dicções e "biografias" singulares
(radicalizando a separação entre
autor empírico e voz poética), Tavares cria universos apartados entre si por meio de gêneros literários que definem formas de
apreender e representar o mundo. O resultado são séries de livros
que determinam uma repartição
temática e estilística.
Na série intitulada "O Bairro",
por exemplo, ele realiza variações
sobre as obras de seis escritores
transformados em personagens
de uma cidade imaginária: "O Senhor Kraus", "O Senhor Calvino",
"O Senhor Valéry", "O Senhor
Henri", "O Senhor Juarroz" e "O
Senhor Brecht" são "exercícios de
estilo", fragmentos que decantam
de modo quase abstrato a lógica
que percorre as obras desses autores.
Bem diferente é a série de "Livros Pretos", composta por "Um
Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser" e "Jerusalém". Aqui, Tavares se distancia
do cerebralismo de "O Bairro" e
empreende um mergulho alegórico na história do século 20, tendo
por fio condutor a guerra, suas
tecnologias e seus morticínios.
No caso específico de "Jerusalém", há um amálgama em que
ciência e loucura, razão e desrazão são as faces de uma moeda
macabra, tendo como pano de
fundo idéias de higiene corporal,
ortopedia moral e eugenia que remetem de modo explícito aos
campos de concentração nazistas.
Cada capítulo agrupa personagens em enredos que se tangenciam e que caminham, entre
"flashbacks" e deambulações, para uma cena final de destruição.
De um lado, há os excluídos:
num primeiro plano, a esquizofrênica Mylia, que se casa com o
psiquiatra Theodor Busbeck e
que, internada num manicômio,
engravida do também esquizofrênico Ernst Spengler; em segundo
plano, Hinnerk Obst, ex-combatente sustentado pela prostituta
Hanna e que freqüentou essa esfera do inumano que iguala heróis e
criminosos de guerra ("eu não
sou um homem, eu sou outra coisa, outra coisa!", grita ele para as
crianças que o vêem como um espantalho).
De outro lado, há os artífices da
realidade alheia: o doutor Gomperz, diretor do manicômio em
que se utilizam técnicas disciplinares semelhantes às descritas
por Foucault em "Vigiar e Punir",
e Theodor Busbeck, alienista que
tem como projeto estabelecer um
gráfico capaz de prever a incidência do horror ao longo da história.
Tais personagens (loucos visionários e cientistas pornógrafos,
hipnotizados por teses darwinistas) lembram figuras de "grand
guignol"; seus nomes germânicos, que convidam a decifrar referências ocultas, remetem ao grotesco do cinema expressionista.
Tavares introduz, nessas figuras
monomaníacas, paisagens interiores onde irrompe um "real"
que transtorna todas as representações, como as lesões no corpo
de Mylia ou as fissuras no discurso cientificista de Busbeck.
O próprio título do livro (citação do Salmo que proclama: "Se
eu me esquecer de ti, Jerusalém,
que seque a minha mão direita") é
uma convocação para recapitular
o núcleo negro daquilo que não
pode ser recalcado na história
pessoal e coletiva -mas que tampouco dissolve traumas ainda vigentes.
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Jerusalém
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Caminho
Quanto: 11,34 euros (256 págs.)
Onde encomendar: livraria Portugal,
tel. 0/xx/11/3159-2548, e-mail:
mfontes@livrariaportugal.com.br
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