São Paulo, sábado, 03 de dezembro de 2005

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RODAPÉ

Vigiar e punir

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Escritor português nascido em Angola, Gonçalo M. Tavares publicou de 2001 até hoje mais de 15 livros, arrebatando diversas honrarias em seu país -dentre as quais o Prêmio José Saramago de 2005, pelo romance "Jerusalém". Ao contrário do que essa contabilidade editorial pode sugerir, não se trata de uma obra caudalosa, mas de uma produção que se expande por volumes enxutos, em que chama a atenção uma invulgar variedade de gêneros narrativos.
Correndo o risco de supervalorizar uma obra ainda em construção, pode-se dizer que Tavares tomou emprestado de Fernando Pessoa a idéia de criar heterônimos, aplicando essa filosofia da composição a modalidades de escrita que vão do romance à micronarrativa, do poema ao ensaio, do aforismo ao teatro.
Assim como Pessoa inventa máscaras autorais que implicam dicções e "biografias" singulares (radicalizando a separação entre autor empírico e voz poética), Tavares cria universos apartados entre si por meio de gêneros literários que definem formas de apreender e representar o mundo. O resultado são séries de livros que determinam uma repartição temática e estilística.
Na série intitulada "O Bairro", por exemplo, ele realiza variações sobre as obras de seis escritores transformados em personagens de uma cidade imaginária: "O Senhor Kraus", "O Senhor Calvino", "O Senhor Valéry", "O Senhor Henri", "O Senhor Juarroz" e "O Senhor Brecht" são "exercícios de estilo", fragmentos que decantam de modo quase abstrato a lógica que percorre as obras desses autores.
Bem diferente é a série de "Livros Pretos", composta por "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser" e "Jerusalém". Aqui, Tavares se distancia do cerebralismo de "O Bairro" e empreende um mergulho alegórico na história do século 20, tendo por fio condutor a guerra, suas tecnologias e seus morticínios.
No caso específico de "Jerusalém", há um amálgama em que ciência e loucura, razão e desrazão são as faces de uma moeda macabra, tendo como pano de fundo idéias de higiene corporal, ortopedia moral e eugenia que remetem de modo explícito aos campos de concentração nazistas. Cada capítulo agrupa personagens em enredos que se tangenciam e que caminham, entre "flashbacks" e deambulações, para uma cena final de destruição.
De um lado, há os excluídos: num primeiro plano, a esquizofrênica Mylia, que se casa com o psiquiatra Theodor Busbeck e que, internada num manicômio, engravida do também esquizofrênico Ernst Spengler; em segundo plano, Hinnerk Obst, ex-combatente sustentado pela prostituta Hanna e que freqüentou essa esfera do inumano que iguala heróis e criminosos de guerra ("eu não sou um homem, eu sou outra coisa, outra coisa!", grita ele para as crianças que o vêem como um espantalho).
De outro lado, há os artífices da realidade alheia: o doutor Gomperz, diretor do manicômio em que se utilizam técnicas disciplinares semelhantes às descritas por Foucault em "Vigiar e Punir", e Theodor Busbeck, alienista que tem como projeto estabelecer um gráfico capaz de prever a incidência do horror ao longo da história.
Tais personagens (loucos visionários e cientistas pornógrafos, hipnotizados por teses darwinistas) lembram figuras de "grand guignol"; seus nomes germânicos, que convidam a decifrar referências ocultas, remetem ao grotesco do cinema expressionista.
Tavares introduz, nessas figuras monomaníacas, paisagens interiores onde irrompe um "real" que transtorna todas as representações, como as lesões no corpo de Mylia ou as fissuras no discurso cientificista de Busbeck.
O próprio título do livro (citação do Salmo que proclama: "Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita") é uma convocação para recapitular o núcleo negro daquilo que não pode ser recalcado na história pessoal e coletiva -mas que tampouco dissolve traumas ainda vigentes.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Jerusalém
   
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Caminho
Quanto: 11,34 euros (256 págs.)
Onde encomendar: livraria Portugal, tel. 0/xx/11/3159-2548, e-mail: mfontes@livrariaportugal.com.br


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