São Paulo, sábado, 03 de dezembro de 2005

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FERNANDO GABEIRA

As aves que aqui agouram não agouram como lá

Quando Lula comparou a oposição às aves de mau agouro, confesso que fiquei levemente irritado. Seria uma recaída do pensamento mágico? Urucubacas, feitiços, monstros, prodígios? Ando meio cansado disso tudo. Vou olhar com outros olhos.
A idéia de animalizar a oposição não é nova na esquerda brasileira. Lembro-me de que Carlos Lacerda era chamado de Corvo. Era agressivo, falava abertamente em derrubar o governo e se entendia com os militares, que, por sua vez, eram chamados de gorilas.
Hoje as coisas mudaram. Já não se protesta contra animalização, pois os avanços intelectuais têm nos mostrado que os seres humanos não estão assim com essa bola toda. O progresso que os chineses alcançaram na previsão de terremotos deve-se, em parte, ao movimento das cobras que se antecipam ao fenômeno. Animais e plantas têm o dom de comunicar.
O reparo que faço ao discurso do presidente é o fato de ter confundido aves. Isso pode acontecer, por exemplo, numa estrada, dependendo da velocidade, da distância e ângulo. Um pássaro preto pode ser um anum, um tiziu ou um coleiro, são equívocos comuns.
A oposição no Brasil é tudo, menos ave de mau agouro. Ela é um bem-te-vi. Não um bem-te-vi desses que saúdam a paisagem, inclusive nossa presença. Mas apenas um bem-te-vi que registra, denuncia: estamos vendo o que se passa. Não há ninguém torcendo para que tudo de errado, simplesmente porque quase tudo dá errado, independente da torcida.
O que causa uma certa irritação, para ficar na linguagem animal, é o lobo tentar passar, entre lobos, por uma inocente avozinha. É até compreensível que o faça com o Chapeuzinho Vermelho. O que foi feito do dinheiro da Visanet? Foi para melhor te alimentar, minha filha. E o prejuízo dado pela GTech? Isso foi para melhor te agasalhar, minha filha.
Bem-te-vi. Há pouco mais de dois anos, havia um núcleo duro no governo. Hoje, o núcleo se pulverizou. Se sabemos de antemão que somos pó e ao pó vamos voltar, por que essa história de núcleo duro? Dirceu praticamente cassado, Gushiken discreto num canto, Palocci às voltas com Poletos, Burattis, Barquetes e Ademilsons.
Se queriam se manter nesse nomenclatura celular, por que não um núcleo flexível, poroso? O que me espanta, aqui nesse galho, é ver que não aprendem a lição.
Daqui a pouco, estará de pé outro núcleo duro. É uma pena. Márcio Thomaz Bastos deveria, por exemplo, vir a público interpretar o referendum e anunciar novas diretrizes de segurança. Não o fez de forma clara, a ponto de dar uma resposta à maioria.
Se não atuou como alguém de um núcleo poroso e flexível, possivelmente estaria fazendo coisas de núcleo duro. O que são essas coisas? O de sempre: como é que vamos sair dessa, quem diz o que, onde?
Muita gente se pergunta o que seria do governo se tivesse uma oposição do tipo que o PT fez no passado. Imaginem se Lacerda tivesse 20 minutos da TV Senado todos os dias. Como falaria, numa mesma tarde em que um vice-presidente ataca a política econômica, um ex-ministro está em guerrilha jurídica contra a própria cassação e a ministra tenta fazer funcionar uma linha telefônica ocupada, em plena inauguração pública.
De um lado, a democracia avançou; de outro, os protestos foram se concentrando no mundo virtual.O único elemento novo nessa ausência de lutas maciças é o desespero individual: um bispo faz greve de fome, um ecologista toca fogo no corpo, um escritor dá bengaladas.
Além das condições internacionais favoráveis, o governo contou com uma oposição gentil, educada na Suíça, eu diria. Ela só canta bem-te-vi e, às vezes, como no caso da gestão de Palocci, em Ribeirão Preto, faz alguma vista grossa, que consiste em não ligar todos os fatos disponíveis.
Aliás, essa desconexão é tão flagrante que uma testemunha do Paraná, com dados preciosos sobre a GTech, acabou sendo convocada para falar na CPI dos Correios. Seu depoimento deveria ser na dos Bingos, onde os dados e as notas fiscais que apresentou caracterizam uma prova. Nem nos Correios ela chegou.
Chamado de Corvo, Lacerda era também uma águia. Até isso, indispensáveis sinapses, foi desaparecendo da vida política brasileira. Conectar fatos e idéias não é o forte da oposição que apenas canta bem-te-vi, com um nível maior ou menor de nervosismo. Pássaros solitários em busca de parceiros, com os olhos fatigados com o que vêem.
O ideal para Lula seria um viveiro de papagaios. Deveria dar graças a Deus pelos bem-te-vis. Um só corvo iria revolucionar essa floresta.
Mesmo reconhecendo todos os avanços democráticos, considero, entretanto, que esses sintomas de desespero individual deveriam ser levados em conta. Num modelo de dominação ideal -para os dominadores, é claro-, controla-se o aparato de Estado, as organizações de massa e a mídia. Esse terceiro fator escapou.
Com as entidades mais antigas fechadas com o governo e sua subvenção, não há clássicas correias de transmissão. Apenas o indivíduo e eles. Alguns indivíduos estão perdendo a paciência. Quando um desesperado sozinho se manifesta, isto tem uma conseqüência. Quando cinco desesperados se juntam, os resultados podem ser mais dramáticos.
É só uma especulação: cantar mais do que isso pode parecer um canto de mau agouro.


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