|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO GABEIRA
As aves que aqui agouram não agouram como lá
Quando Lula comparou a
oposição às aves de mau
agouro, confesso que fiquei levemente irritado. Seria uma recaída
do pensamento mágico? Urucubacas, feitiços, monstros, prodígios?
Ando meio cansado disso tudo.
Vou olhar com outros olhos.
A idéia de animalizar a oposição não é nova na esquerda brasileira. Lembro-me de que Carlos
Lacerda era chamado de Corvo.
Era agressivo, falava abertamente
em derrubar o governo e se entendia com os militares, que, por sua
vez, eram chamados de gorilas.
Hoje as coisas mudaram. Já não
se protesta contra animalização,
pois os avanços intelectuais têm
nos mostrado que os seres humanos não estão assim com essa bola
toda. O progresso que os chineses
alcançaram na previsão de terremotos deve-se, em parte, ao movimento das cobras que se antecipam ao fenômeno. Animais e
plantas têm o dom de comunicar.
O reparo que faço ao discurso do
presidente é o fato de ter confundido aves. Isso pode acontecer, por
exemplo, numa estrada, dependendo da velocidade, da distância
e ângulo. Um pássaro preto pode
ser um anum, um tiziu ou um coleiro, são equívocos comuns.
A oposição no Brasil é tudo, menos ave de mau agouro. Ela é um
bem-te-vi. Não um bem-te-vi desses que saúdam a paisagem, inclusive nossa presença. Mas apenas
um bem-te-vi que registra, denuncia: estamos vendo o que se passa.
Não há ninguém torcendo para
que tudo de errado, simplesmente
porque quase tudo dá errado, independente da torcida.
O que causa uma certa irritação,
para ficar na linguagem animal, é
o lobo tentar passar, entre lobos,
por uma inocente avozinha. É até
compreensível que o faça com o
Chapeuzinho Vermelho. O que foi
feito do dinheiro da Visanet? Foi
para melhor te alimentar, minha
filha. E o prejuízo dado pela
GTech? Isso foi para melhor te
agasalhar, minha filha.
Bem-te-vi. Há pouco mais de
dois anos, havia um núcleo duro
no governo. Hoje, o núcleo se pulverizou. Se sabemos de antemão
que somos pó e ao pó vamos voltar, por que essa história de núcleo
duro? Dirceu praticamente cassado, Gushiken discreto num canto,
Palocci às voltas com Poletos, Burattis, Barquetes e Ademilsons.
Se queriam se manter nesse nomenclatura celular, por que não
um núcleo flexível, poroso? O que
me espanta, aqui nesse galho, é
ver que não aprendem a lição.
Daqui a pouco, estará de pé outro núcleo duro. É uma pena.
Márcio Thomaz Bastos deveria,
por exemplo, vir a público interpretar o referendum e anunciar
novas diretrizes de segurança.
Não o fez de forma clara, a ponto
de dar uma resposta à maioria.
Se não atuou como alguém de
um núcleo poroso e flexível, possivelmente estaria fazendo coisas de
núcleo duro. O que são essas coisas? O de sempre: como é que vamos sair dessa, quem diz o que,
onde?
Muita gente se pergunta o que
seria do governo se tivesse uma
oposição do tipo que o PT fez no
passado. Imaginem se Lacerda tivesse 20 minutos da TV Senado
todos os dias. Como falaria, numa
mesma tarde em que um vice-presidente ataca a política econômica, um ex-ministro está em guerrilha jurídica contra a própria cassação e a ministra tenta fazer funcionar uma linha telefônica ocupada, em plena inauguração pública.
De um lado, a democracia avançou; de outro, os protestos foram
se concentrando no mundo virtual.O único elemento novo nessa
ausência de lutas maciças é o desespero individual: um bispo faz
greve de fome, um ecologista toca
fogo no corpo, um escritor dá bengaladas.
Além das condições internacionais favoráveis, o governo contou
com uma oposição gentil, educada na Suíça, eu diria. Ela só canta
bem-te-vi e, às vezes, como no caso
da gestão de Palocci, em Ribeirão
Preto, faz alguma vista grossa, que
consiste em não ligar todos os fatos disponíveis.
Aliás, essa desconexão é tão flagrante que uma testemunha do
Paraná, com dados preciosos sobre a GTech, acabou sendo convocada para falar na CPI dos Correios. Seu depoimento deveria ser
na dos Bingos, onde os dados e as
notas fiscais que apresentou caracterizam uma prova. Nem nos
Correios ela chegou.
Chamado de Corvo, Lacerda era
também uma águia. Até isso, indispensáveis sinapses, foi desaparecendo da vida política brasileira. Conectar fatos e idéias não é o
forte da oposição que apenas canta bem-te-vi, com um nível maior
ou menor de nervosismo. Pássaros solitários em busca de parceiros, com os olhos fatigados com o
que vêem.
O ideal para Lula seria um viveiro de papagaios. Deveria dar
graças a Deus pelos bem-te-vis.
Um só corvo iria revolucionar essa floresta.
Mesmo reconhecendo todos os
avanços democráticos, considero,
entretanto, que esses sintomas de
desespero individual deveriam
ser levados em conta. Num modelo de dominação ideal -para os
dominadores, é claro-, controla-se o aparato de Estado, as organizações de massa e a mídia. Esse
terceiro fator escapou.
Com as entidades mais antigas
fechadas com o governo e sua
subvenção, não há clássicas correias de transmissão. Apenas o indivíduo e eles. Alguns indivíduos
estão perdendo a paciência.
Quando um desesperado sozinho
se manifesta, isto tem uma conseqüência. Quando cinco desesperados se juntam, os resultados podem ser mais dramáticos.
É só uma especulação: cantar
mais do que isso pode parecer um
canto de mau agouro.
@ - contato@gabeira.com.br
Texto Anterior: Série: "Mistérios do Oráculo" mistura HQ e magia Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Evento festeja 30 anos de "Lavoura Arcaica" Índice
|