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ANÁLISE
Sucesso está em infância imperfeita
GERALD THOMAS
Colunista da Folha
Como poucas vezes na história
dos programas infantis, os Teletubbies criam polêmica por onde
passam. Mesmo antes de sua estréia, há um ano e meio, os críticos
de televisão da imprensa inglesa já
foram cruéis, taxando o programa
de "brainless" (sem cérebro) e dizendo que as pobres crianças (que
um crítico chamou de "vítimas potenciais do sadismo adulto") estariam expostas a uma série que nada mais é do que uma amálgama
de senilidade precoce.
Mas a série é um sucesso -e não
somente entre as crianças. Os
adultos também acabaram fixados
nessas figuras inclassificáveis, talvez por enxergarem nelas uma espécie de espelho crítico da sociedade moderna, uma forma intuitiva e
não-verbal de revolta infantil contra a ordem (leia-se regras, regulamentos e protocolo) do mundo
dos adultos. É fácil entender porque os grupos conservadores fizeram tanto barulho. A BBC (estatal
e compromissada com as tradições
e valores da sociedade britânica) às
vezes transgride as normas, como
foi o caso com o "Monty Python"
há três décadas.
Nesses casos sempre há barulho,
protestos. A BBC sempre se defende, justificando seu produto como
sendo resultado de extensas e sofisticadas pesquisas, estudos etc.
Mas nada disso importa. Quando
a gente senta para ver o programa,
o que mais impressiona é que ele
consegue nos fazer lembrar -por
meio de sons e expressões e sem
nostalgia- da infância fantástica
(e sofrida) que a memória apagou.
Guardadas as devidas proporções,
a linguagem usada pelos Teletubbies tem seu berço na onomatopéia de James Joyce.
Se Lewis Caroll estivesse vivo,
talvez descrevesse os Teletubbies
como uma espécie de "Alice no
País dos Horrores". De fato, a
mensagem não é muito otimista.
Apesar de engraçados e repletos de
"sentimento", Tinky Winky,
Dipsy, Laa Laa e Po -cujas criações são claramente inspiradas na
campanha mundial de unificação
das raças da "United Colors of
Benneton"- se relacionam com
produtos de consumo. O melhor
amigo deles é um aspirador de pó
(Noo Noo), que representa ali uma
espécie de "consciência", uma presença infiltrada do mundo adulto,
uma intromissão repressiva da
nossa educação tradicional, higiênica, limpa e cheia de preconceitos.
O fator mais inovativo da série
reside no fato de incentivar (obrigar quase) a criança a pensar simultaneamente com o desenrolar
das cenas e poder prever acontecimentos, fazer estratégias e não romantizar a vida, como tantas gerações passadas. Pragmático demais? Frio? Talvez, mas o fato é que
os Teletubbies vivem num mundo
claramente impossível, no qual
não se mente nunca. A fronteira
entre verdade e mentira é explícita,
palpável e, mesmo assim, sobra
um enorme espaço para a fantasia.
Talvez o que mais fascine adultos
e crianças é a identificação com um
mundo infantil nem sempre florido, lindo e inocente. Muito pelo
contrário, o programa foi criado
com a premissa de que todas aquelas "verdades" que a educação tradicional formalizou não passam de
mentiras solidificadas pela história. Os Teletubbies vieram para
conversar com os filhos (ou netos)
da geração anti-establishment e,
justamente por causa disso, pegam
emprestado muitos de seus ideais.
Avalizados pelas vozes dos dois
maiores "monstros sagrados" da
comédia inglesa, Penelope Keith e
Eric Sykes, o tom da série só poderia mesmo estar sublinhado por
um sutil sarcasmo. Afinal, quando
atrás de portas fechadas, as crianças exercem todo tipo de sadismo e
maldade com seus brinquedos e
dizem coisas terríveis. É justamente essa, digamos, "honestidade"
em retratar o mundo interior e
complexo de uma criança e relacioná-lo às convenções tortas e
cruéis da sociedade como um todo
que tanto choca os críticos e aqueles favoráveis ao estilo tradicional
dos programas infantis.
Geralmente condescendentes e
usando aquele tom de voz débil
mental, os programas tradicionais
têm muito a temer com a chegada
de "Teletubbies", pois a série pode
trazer, escondidos em sua bagagem camuflada, a libertação das
crianças da tirania e do oportunismo do mundo real, ou seja, do
mundo dos adultos.
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