São Paulo, quinta, 3 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Índice

ANÁLISE
Sucesso está em infância imperfeita

GERALD THOMAS
Colunista da Folha

Como poucas vezes na história dos programas infantis, os Teletubbies criam polêmica por onde passam. Mesmo antes de sua estréia, há um ano e meio, os críticos de televisão da imprensa inglesa já foram cruéis, taxando o programa de "brainless" (sem cérebro) e dizendo que as pobres crianças (que um crítico chamou de "vítimas potenciais do sadismo adulto") estariam expostas a uma série que nada mais é do que uma amálgama de senilidade precoce.
Mas a série é um sucesso -e não somente entre as crianças. Os adultos também acabaram fixados nessas figuras inclassificáveis, talvez por enxergarem nelas uma espécie de espelho crítico da sociedade moderna, uma forma intuitiva e não-verbal de revolta infantil contra a ordem (leia-se regras, regulamentos e protocolo) do mundo dos adultos. É fácil entender porque os grupos conservadores fizeram tanto barulho. A BBC (estatal e compromissada com as tradições e valores da sociedade britânica) às vezes transgride as normas, como foi o caso com o "Monty Python" há três décadas.
Nesses casos sempre há barulho, protestos. A BBC sempre se defende, justificando seu produto como sendo resultado de extensas e sofisticadas pesquisas, estudos etc.
Mas nada disso importa. Quando a gente senta para ver o programa, o que mais impressiona é que ele consegue nos fazer lembrar -por meio de sons e expressões e sem nostalgia- da infância fantástica (e sofrida) que a memória apagou. Guardadas as devidas proporções, a linguagem usada pelos Teletubbies tem seu berço na onomatopéia de James Joyce.
Se Lewis Caroll estivesse vivo, talvez descrevesse os Teletubbies como uma espécie de "Alice no País dos Horrores". De fato, a mensagem não é muito otimista. Apesar de engraçados e repletos de "sentimento", Tinky Winky, Dipsy, Laa Laa e Po -cujas criações são claramente inspiradas na campanha mundial de unificação das raças da "United Colors of Benneton"- se relacionam com produtos de consumo. O melhor amigo deles é um aspirador de pó (Noo Noo), que representa ali uma espécie de "consciência", uma presença infiltrada do mundo adulto, uma intromissão repressiva da nossa educação tradicional, higiênica, limpa e cheia de preconceitos.
O fator mais inovativo da série reside no fato de incentivar (obrigar quase) a criança a pensar simultaneamente com o desenrolar das cenas e poder prever acontecimentos, fazer estratégias e não romantizar a vida, como tantas gerações passadas. Pragmático demais? Frio? Talvez, mas o fato é que os Teletubbies vivem num mundo claramente impossível, no qual não se mente nunca. A fronteira entre verdade e mentira é explícita, palpável e, mesmo assim, sobra um enorme espaço para a fantasia.
Talvez o que mais fascine adultos e crianças é a identificação com um mundo infantil nem sempre florido, lindo e inocente. Muito pelo contrário, o programa foi criado com a premissa de que todas aquelas "verdades" que a educação tradicional formalizou não passam de mentiras solidificadas pela história. Os Teletubbies vieram para conversar com os filhos (ou netos) da geração anti-establishment e, justamente por causa disso, pegam emprestado muitos de seus ideais.
Avalizados pelas vozes dos dois maiores "monstros sagrados" da comédia inglesa, Penelope Keith e Eric Sykes, o tom da série só poderia mesmo estar sublinhado por um sutil sarcasmo. Afinal, quando atrás de portas fechadas, as crianças exercem todo tipo de sadismo e maldade com seus brinquedos e dizem coisas terríveis. É justamente essa, digamos, "honestidade" em retratar o mundo interior e complexo de uma criança e relacioná-lo às convenções tortas e cruéis da sociedade como um todo que tanto choca os críticos e aqueles favoráveis ao estilo tradicional dos programas infantis.
Geralmente condescendentes e usando aquele tom de voz débil mental, os programas tradicionais têm muito a temer com a chegada de "Teletubbies", pois a série pode trazer, escondidos em sua bagagem camuflada, a libertação das crianças da tirania e do oportunismo do mundo real, ou seja, do mundo dos adultos.



Texto Anterior | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.