São Paulo, terça-feira, 04 de janeiro de 2005

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LITERATURA

Carpentier, pioneiro da vertente que retratou a América Latina com escritos fantásticos, nascia há cem anos

Realismo mágico driblou censura com humor

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Há cem anos, em 26 de dezembro de 1904 nascia em Havana um dos mais importantes escritores latino-americanos, Alejo Carpentier. Filho de um arquiteto francês e de uma musicista russa, Carpentier teve uma formação sofisticada, inclusive com passagens por colégios europeus.
Ainda na juventude, contudo, revelou-se como rebelde, tendo sido inclusive preso na Cidade do México por participar de uma manifestação estudantil contra o governo. Foi na prisão que começou a escrever o romance "Ecué Yamba O", cujo título já indica a tendência de sua literatura: trata-se, segundo o próprio autor, de uma narrativa afro-cubana. Carpentier estava em busca das raízes culturais da América Latina. Mas o que o tornou realmente conhecido foi o realismo mágico.
A expressão já existia; havia sido criada em 1925 pelo crítico alemão Franz Roh para designar a arte pós-expressionista. À época, muitos escritores e artistas latino-americanos viviam na Europa e eram naturalmente influenciados pelo surrealismo e pela valorização das fantasias nascidas no inconsciente -não podemos esquecer que a psicanálise freudiana estava em ascensão. Voltando a seus países, contudo, davam-se conta de que procuravam longe o que estava perto; em matéria de exótico e de fantasia, a América Latina era um celeiro inesgotável. Nisso Carpentier foi pioneiro.
Como afirmou num depoimento de 1933: "Sentia um ardente desejo de expressar a realidade latino-americana, mas ainda não sabia como fazê-lo. Durante muito tempo li tudo o que podia sobre a América, desde as cartas de Colombo, passando pelo Inca Garcilaso, até os autores do século 18." Lembra Cortés que, numa carta ao rei de Espanha, preferia não ter palavras para descrever a América: "Dei-me conta de que essas eram as palavras que tínhamos de achar".
Ajudou-o muito nessa busca as exaustivas pesquisas realizadas em museus, bibliotecas e arquivos, mas, sobretudo, a viagem que realizou (1943) ao Haiti, ao Alto Orinoco e à Amazônia, em companhia do ator francês Louis Jouvet. Foi um rito de passagem, um mergulho na rica cultura indígena, com suas lendas e seus mitos. Na volta, escreve "O Reino deste Mundo" (1949), com um prefácio que discute o real maravilhoso, expressão equivalente a realismo mágico ou realismo fantástico.
No ensaio "Acerca do Real-Maravilhoso Americano" (1964), que completa o prefácio de 1949, diz Carpentier: "A América é o único continente onde diferentes eras coexistem", onde os avanços tecnológicos da modernidade convivem com o primitivo. Esta situação configura o choque cultural do qual nasce a fantasia que alimentará a nova vertente literária.
Em termos de literatura o fantasioso não chega a ser novidade; já estava presente em Rabelais, em Sterne, em Hoffmann. Mas o realismo mágico latino-americano tem características próprias. Ele não apenas funde a narrativa realista com elementos fantásticos; vai mais além, sobretudo por causa do quadro político, econômico e social vigente na América Latina dos anos 60 e 70. É então que o atraso da região fica mais evidente, que os movimentos reinvindicatórios crescem e é o momento também em que ditaduras militares tomam o poder em quase todos os países: uma decorrência da Guerra Fria que estava então em seu auge e da revolução cubana vista como ameaça pelos setores conservadores. E é então que Miguel Ángel Asturias, Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez de "Cem Anos de Solidão" (1967) e "O Outono do Patriarca" (1975), vão chamar a atenção do público e consolidar o gênero, que será também representado por autores europeus como Italo Calvino, Günter Grass e Salman Rushdie.
Mas quais as características do realismo mágico? Em que se diferencia de outros tipos de literatura fantasiosa? A grande característica é o humor, o mesmo humor que encontramos no Carnaval brasileiro, associado à ironia, esta instrumento de protesto: afinal, o realismo mágico era a maneira de driblar a não muito inteligente censura dos países da América Latina. Ironia em geral implica distanciamento, e alguns dos autores de fato pertenciam à elite, mas isso não impedia que se identificassem, como o faz García Márquez, com o sofrimento do povo. Uma outra característica inclui-se na "suspension of disbelief", na renúncia à descrença, de que falava Coleridge como pré-condição para entrada no universo literário: os escritores falam de coisas fantásticas como se tivessem acontecido na realidade. Finalmente, e utilizando a concepção mítica do universo, o tempo freqüentemente é caracterizado como cíclicom, em vez de linear: as coisas tendem a se repetir (e, de novo, as recorrentes ditaduras eram um bom modelo para isso).
Quarenta anos depois do seminal texto de Carpentier, o que ficou do realismo mágico? Esta é uma pergunta que faz minha geração de escritores, fortemente influenciada por essa forma narrativa. E a resposta é óbvia: ficou muito pouco. O próprio García Márquez abandonou o realismo mágico, entregue à elaboração de suas memórias. Não deixou a ficção; mas sua primeira novela em dez anos, "Memorias de Mis Putas Tristes" (de novo a alusão à memória), claramente inspirado por "A Casa das Belas Adormecidas", do japonês Yasunari Kawabata, fala de um ancião que resiste à velhice e que se sente rejuvenescer graças a uma impossível e platônica relação com uma adolescente, um tema que Goethe poderia abordar. Ou seja, o realismo mágico, como tantas outras correntes literárias, pertence à história. Isso não impede que seja lido com enorme deleite e emoção por milhões de pessoas em todo o mundo. O realismo mágico não morreu: ficou encantado.


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