São Paulo, segunda, 4 de janeiro de 1999

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Pequena lista de indecisões para o ano que entra

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha ² O ano acabou depressa. Depressa demais para que pudesse formular minhas resoluções para 99. O que seria uma lista de resoluções decisivas para melhorar de vida acabou resultando num inventário de dúvidas.
A primeira a ser abalada foi a resolução de conter despesas. Todos dizem que o ano será tenebroso. Estado, empresas e famílias terão de conter gastos. Por que não eu que, ao contrário das empresas, já não tenho mais o que gastar?
Conter despesas, portanto, era a grande candidata à resolução do réveillon. Acontece que, com o crédito que ainda tinha, resolvi comprar o livro "Illusion Économique", de Emannuel Todd. Involuntariamente, o autor sabotou minhas certezas. Ele me convenceu de que uma das causas da estagnação no mundo globalizado é o crescimento modesto da demanda, em relação ao aumento de produtividade.
Se contenho as despesas brutalmente, deixo de comprar os produtos que fazem rodar a máquina mundial. Perdi a segurança de que devo economizar, mas não disponho de dinheiro para contribuir com a economia planetária. Logo, essa resolução de conter despesas não merece esse nome.
O mesmo raciocínio seria válido se decidisse não ter mais filhos. Seria mais econômico, tensionaria menos o meio ambiente, mas tiraria algumas futuras famílias do campo da demanda e mais uma vez poderia danificar o sensível mecanismo que toca o mundo.
Resoluções espirituais são também muito difíceis. Suponhamos que alguém queira se aproximar do Deus católico. Seria prudente dançar na missa dos padres cantores? E se esse Deus trabalhado durante séculos pela música sacra européia e mesmo brasileira se irritasse com nosso culto e lançasse uma mensagem ameaçadora nos céus do planeta: Johann Sebastian Bach ou inferno para todos.
Tudo bem, você leria a mensagem e mudaria seus hábitos. Acontece que nem todos podem ler essas mensagens, e você corre o risco de continuar cantando nas missas de praia, sem perceber que soou o gongo. Melhor seria heavy metal, já que o inferno só com um violão tende a ser insuportável.
Decisões no campo cultural também são dramáticas. O grupo É o Tchan nos despertou para o sexo. Primeiro era aquela música que terminavam embalando um bebê. Fase genital, sem preservativos. Depois foi aquela da garrafa e, finalmente, a da bundinha. Quando você esperava algo de realmente novo, no mínimo, tipo Monica- Clinton, eles começaram a viajar pelo mundo e foram até o Havaí. O Tchan acabou quebrando todas as minhas repressões sobre o estudo da geografia e já não sei mais se os vejo na televisão ou se compro um atlas. Logo não posso resolver nada por aqui.
Tinha pensando em me dedicar ao estudo da defesa, principalmente integrar as questões ecológicas e informáticas ao debate sobre segurança nacional. O primeiro-ministro da defesa é um homem tão simples que minha vontade é perguntar a ele se devemos ter um quarto-zageiro ou se Felipe deve entrar no lugar de Roberto Carlos, na lateral esquerda. Essas autênticas questões de defesa nacional acabaram vindo à tona, logo as resoluções sobre o estudo passaram a ser tão vagas como as outras.
Sobre uma lista de resoluções que podem ser tomadas, mas que não alteram radicalmente a ordem das coisas. Deixar de confundir novelas, por exemplo. Outro dia vi um casal fugindo de uma neblina e que parece ter tido uma noite maravilhosa. Procurei o casal numa outra cena, crianças me disseram: "Você está confundindo a novela". Tenho visto um grande debate na própria TV sobre matar ou não matar Jamanta. "Casseta e Planeta" é pela morte, devem estar certos porque sabem das coisas.
Algumas frases que poderiam ser evitadas. Uma delas, vi na própria televisão: um jovem foi sedado, acordou com uma garota seminua ao seu lado. Foram descobertos pela namorada dele. Adivinhem o que disse? "Não é nada disso que você está pensando." Se pudermos virar o ano certos de que, em caso de flagrante, não diremos essa frase, poderemos entrar em 99 com uma mínima resolução. Será um ano difícil e, já que não teremos mesmo dinheiro, relaxar e aproveitar é o caminho, embora não seja nada disso que está pensando.



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