|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pequena lista de indecisões para o ano que entra
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
²
O ano acabou depressa. Depressa demais para que pudesse formular minhas resoluções
para 99. O que seria uma lista
de resoluções decisivas para
melhorar de vida acabou resultando num inventário de dúvidas.
A primeira a ser abalada foi a
resolução de conter despesas.
Todos dizem que o ano será tenebroso. Estado, empresas e famílias terão de conter gastos.
Por que não eu que, ao contrário das empresas, já não tenho
mais o que gastar?
Conter despesas, portanto, era
a grande candidata à resolução
do réveillon. Acontece que, com
o crédito que ainda tinha, resolvi comprar o livro "Illusion Économique", de Emannuel Todd.
Involuntariamente, o autor sabotou minhas certezas. Ele me
convenceu de que uma das causas da estagnação no mundo
globalizado é o crescimento modesto da demanda, em relação
ao aumento de produtividade.
Se contenho as despesas brutalmente, deixo de comprar os
produtos que fazem rodar a
máquina mundial. Perdi a segurança de que devo economizar, mas não disponho de dinheiro para contribuir com a
economia planetária. Logo, essa resolução de conter despesas
não merece esse nome.
O mesmo raciocínio seria válido se decidisse não ter mais filhos. Seria mais econômico, tensionaria menos o meio ambiente, mas tiraria algumas futuras
famílias do campo da demanda
e mais uma vez poderia danificar o sensível mecanismo que
toca o mundo.
Resoluções espirituais são
também muito difíceis. Suponhamos que alguém queira se
aproximar do Deus católico. Seria prudente dançar na missa
dos padres cantores? E se esse
Deus trabalhado durante séculos pela música sacra européia e
mesmo brasileira se irritasse
com nosso culto e lançasse uma
mensagem ameaçadora nos
céus do planeta: Johann Sebastian Bach ou inferno para todos.
Tudo bem, você leria a mensagem e mudaria seus hábitos.
Acontece que nem todos podem
ler essas mensagens, e você corre o risco de continuar cantando nas missas de praia, sem perceber que soou o gongo. Melhor
seria heavy metal, já que o inferno só com um violão tende a
ser insuportável.
Decisões no campo cultural
também são dramáticas. O grupo É o Tchan nos despertou para o sexo. Primeiro era aquela
música que terminavam embalando um bebê. Fase genital,
sem preservativos. Depois foi
aquela da garrafa e, finalmente, a da bundinha. Quando você
esperava algo de realmente novo, no mínimo, tipo Monica-
Clinton, eles começaram a viajar pelo mundo e foram até o
Havaí. O Tchan acabou quebrando todas as minhas repressões sobre o estudo da geografia
e já não sei mais se os vejo na televisão ou se compro um atlas.
Logo não posso resolver nada
por aqui.
Tinha pensando em me dedicar ao estudo da defesa, principalmente integrar as questões
ecológicas e informáticas ao debate sobre segurança nacional.
O primeiro-ministro da defesa é
um homem tão simples que minha vontade é perguntar a ele se
devemos ter um quarto-zageiro
ou se Felipe deve entrar no lugar de Roberto Carlos, na lateral esquerda. Essas autênticas
questões de defesa nacional
acabaram vindo à tona, logo as
resoluções sobre o estudo passaram a ser tão vagas como as outras.
Sobre uma lista de resoluções
que podem ser tomadas, mas
que não alteram radicalmente
a ordem das coisas. Deixar de
confundir novelas, por exemplo.
Outro dia vi um casal fugindo
de uma neblina e que parece ter
tido uma noite maravilhosa.
Procurei o casal numa outra cena, crianças me disseram: "Você está confundindo a novela".
Tenho visto um grande debate
na própria TV sobre matar ou
não matar Jamanta. "Casseta e
Planeta" é pela morte, devem
estar certos porque sabem das
coisas.
Algumas frases que poderiam
ser evitadas. Uma delas, vi na
própria televisão: um jovem foi
sedado, acordou com uma garota seminua ao seu lado. Foram descobertos pela namorada dele. Adivinhem o que disse?
"Não é nada disso que você está
pensando." Se pudermos virar o
ano certos de que, em caso de
flagrante, não diremos essa frase, poderemos entrar em 99 com
uma mínima resolução. Será
um ano difícil e, já que não teremos mesmo dinheiro, relaxar e
aproveitar é o caminho, embora
não seja nada disso que está
pensando.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|