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"O VIAJANTE"
Filme de Saraceni é um desses anacronismos magníficos
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Com todo o respeito pelo Rio,
não há lugar mais cinematográfico que Minas Gerais. Ali não é somente a terra dos morros e cachoeiras. É, também, o lugar do
não-dito, das coisas que revelam e
silenciam simultaneamente, de
desejos tão intensos que se envergonham de existir, da incapacidade de ser, de singelezas e brutalidades, do catolicismo profundo e
das perversões hediondas, onde
monstros e anjos se confundem e
o mundo mental e o físico se interligam tão misteriosamente que
podemos nos perder, sem saber
que dimensão observamos.
Minas também é, convém não
esquecer, terra da liberdade ainda
que tardia, a que aspiram a viúva
Donana (Marilia Pêra) e a adolescente Sinhá (Leandra Leal), protagonistas de "O Viajante", filme de
Paulo César Saraceni que estréia
hoje em São Paulo.
Ambas são seduzidas pelo estranho do título (Jairo Mattos),
uma espécie de anjo exterminador que chega ao lugarejo onde
vivem (mas em certos momentos
parece mais o boto de "Ele, o Boto", de Walter Lima Jr., mais leve e
sensual do que exterminador).
A viúva matará de maneira infame de seu próprio filho retardado, como quem se livra do passado ingrato ou se liberta do Deus
cruel, que a esqueceu. A menina
será igualmente seduzida, terá sua
beleza maculada, se tornará um
corpo vazio, sem valor -como
ela mesma diz. Ou seja, a libertação não virá assim tão fácil.
É em torno desses elementos
que Saraceni desenvolverá suas
idéias sobre um universo em que
desejo e repressão se entrelaçam
estreitamente.
O espectador poderá perder-se
com facilidade, caso não conheça
alguns referenciais que movem
este filme. Em primeiro lugar, "O
Viajante" é decididamente fora de
moda. Não pertence ao ano 2000,
a esse momento em que os filmes
bajulam o público descaradamente, oferecem em regra narrativas tão evidentes, tão fáceis, que
às vezes nem é preciso entrar no
cinema para conhecê-las.
"O Viajante" é difícil, sim. E
anacrônico também. Mas trata-se
de um magnífico anacronismo,
que se mostrará generosamente a
quem se disponha a abrir os olhos
e contemplá-lo.
Talvez seja preciso lembrar a
sem-cerimônia com que Buñuel
tratava o cinema, para encontrar
um equivalente. Nada da perfeição mecânica dos circos de cavalinho. Em certos momentos, há até
imagens fora de foco, coisa que o
cinema nacional aboliu pela busca da perfeição técnica.
Há, por vezes, imagens dispensáveis, arbitrárias (como Milton
Nascimento fazendo o homem do
realejo a oferecer a sorte num descampado), que a um tempo esvaziam nosso desejo de verossimilhança e afirmam um desejo de
autor (aquilo está ali não porque
seja funcional, mas porque alguém quer que seja assim).
Despojando-se das superstições
a que induz o cinema fácil, o espectador será livre para contemplar a beleza das imagens de Saraceni e da luz de Mário Carneiro.
Para viajar por esse território secreto e dissimulado que é Minas.
Viagem contemplativa, com
certeza, mas não de todo, pois sabemos desde Humberto Mauro
-nosso primeiro grande cineasta- que essa natureza ao mesmo
tempo discreta e ostensiva não se
deixa ver simplesmente. Ali, toda
natureza já é humana, fala de nós
e nos observa, ao mesmo tempo
em que a observamos (pois Minas
somos nós).
Esse é o tom que se impõe, em
particular na primeira metade do
filme -em que o guia de Saraceni
parece ser mais Humberto Mauro
do que Lúcio Cardoso-, diferente da segunda, mais interiorizada
e noturna.
É a esse mundo fantástico, em
que se acotovelam a espiritualidade e a carne, onde os demônios
fustigam a santidade, que nos
transporta "O Viajante". É provável que poucos se habilitem a embarcar. Também é provável que o
filme se constitua num rotundo
fracasso. Nesse caso, estará de
acordo com outra tradição brasileira: a de raramente reconhecer
seus tesouros e de correr atrás de
esmeraldas; ali, só há o brilhareco
das turmalinas.
Avaliação:
Filme: O Viajante
Produção: Brasil, 1999
Diretor: Paulo César Saraceni
Com: Marília Pêra, Jairo Mattos, Leandra
Leal
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco 3
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