São Paulo, #!L#Sexta-feira, 04 de Fevereiro de 2000


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"O VIAJANTE"
Filme de Saraceni é um desses anacronismos magníficos

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Com todo o respeito pelo Rio, não há lugar mais cinematográfico que Minas Gerais. Ali não é somente a terra dos morros e cachoeiras. É, também, o lugar do não-dito, das coisas que revelam e silenciam simultaneamente, de desejos tão intensos que se envergonham de existir, da incapacidade de ser, de singelezas e brutalidades, do catolicismo profundo e das perversões hediondas, onde monstros e anjos se confundem e o mundo mental e o físico se interligam tão misteriosamente que podemos nos perder, sem saber que dimensão observamos.
Minas também é, convém não esquecer, terra da liberdade ainda que tardia, a que aspiram a viúva Donana (Marilia Pêra) e a adolescente Sinhá (Leandra Leal), protagonistas de "O Viajante", filme de Paulo César Saraceni que estréia hoje em São Paulo.
Ambas são seduzidas pelo estranho do título (Jairo Mattos), uma espécie de anjo exterminador que chega ao lugarejo onde vivem (mas em certos momentos parece mais o boto de "Ele, o Boto", de Walter Lima Jr., mais leve e sensual do que exterminador).
A viúva matará de maneira infame de seu próprio filho retardado, como quem se livra do passado ingrato ou se liberta do Deus cruel, que a esqueceu. A menina será igualmente seduzida, terá sua beleza maculada, se tornará um corpo vazio, sem valor -como ela mesma diz. Ou seja, a libertação não virá assim tão fácil.
É em torno desses elementos que Saraceni desenvolverá suas idéias sobre um universo em que desejo e repressão se entrelaçam estreitamente.
O espectador poderá perder-se com facilidade, caso não conheça alguns referenciais que movem este filme. Em primeiro lugar, "O Viajante" é decididamente fora de moda. Não pertence ao ano 2000, a esse momento em que os filmes bajulam o público descaradamente, oferecem em regra narrativas tão evidentes, tão fáceis, que às vezes nem é preciso entrar no cinema para conhecê-las.
"O Viajante" é difícil, sim. E anacrônico também. Mas trata-se de um magnífico anacronismo, que se mostrará generosamente a quem se disponha a abrir os olhos e contemplá-lo.
Talvez seja preciso lembrar a sem-cerimônia com que Buñuel tratava o cinema, para encontrar um equivalente. Nada da perfeição mecânica dos circos de cavalinho. Em certos momentos, há até imagens fora de foco, coisa que o cinema nacional aboliu pela busca da perfeição técnica.
Há, por vezes, imagens dispensáveis, arbitrárias (como Milton Nascimento fazendo o homem do realejo a oferecer a sorte num descampado), que a um tempo esvaziam nosso desejo de verossimilhança e afirmam um desejo de autor (aquilo está ali não porque seja funcional, mas porque alguém quer que seja assim).
Despojando-se das superstições a que induz o cinema fácil, o espectador será livre para contemplar a beleza das imagens de Saraceni e da luz de Mário Carneiro. Para viajar por esse território secreto e dissimulado que é Minas.
Viagem contemplativa, com certeza, mas não de todo, pois sabemos desde Humberto Mauro -nosso primeiro grande cineasta- que essa natureza ao mesmo tempo discreta e ostensiva não se deixa ver simplesmente. Ali, toda natureza já é humana, fala de nós e nos observa, ao mesmo tempo em que a observamos (pois Minas somos nós).
Esse é o tom que se impõe, em particular na primeira metade do filme -em que o guia de Saraceni parece ser mais Humberto Mauro do que Lúcio Cardoso-, diferente da segunda, mais interiorizada e noturna.
É a esse mundo fantástico, em que se acotovelam a espiritualidade e a carne, onde os demônios fustigam a santidade, que nos transporta "O Viajante". É provável que poucos se habilitem a embarcar. Também é provável que o filme se constitua num rotundo fracasso. Nesse caso, estará de acordo com outra tradição brasileira: a de raramente reconhecer seus tesouros e de correr atrás de esmeraldas; ali, só há o brilhareco das turmalinas.


Avaliação:     

Filme: O Viajante Produção: Brasil, 1999 Diretor: Paulo César Saraceni Com: Marília Pêra, Jairo Mattos, Leandra Leal Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 3

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