São Paulo, #!L#Sexta-feira, 04 de Fevereiro de 2000


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CRÍTICA
Filme disseca falcatruas políticas

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Para muita gente, Oscar Wilde (1854-1900) foi mais importante do que os textos que escreveu. Um dos raros grandes escritores da história da literatura cuja vida se sobrepôs à obra.
Assim também, suas peças ficaram famosas mais pela inteligência dos diálogos e pela presença de espírito de algumas tiradas do que por terem revolucionado a história da dramaturgia mundial. São obras mais de um estilista do que de um inovador.
"O Marido Ideal", de 1895, é típica dessa sagacidade com que os personagens se espetam uns aos outros e com que revidam com respostas ainda mais cortantes. Comparada, no entanto, a "The Importance of Being Earnest" ("A Importância de Ser Ernesto", numa tradução que perde o duplo sentido do título em inglês, mas mantém a fidelidade ao tom farsesco do texto), considerada a obra-prima do autor, "O Marido Ideal" parece uma comédia menos radical e mais romântica.
É uma peça de diálogos, que depende muito dos atores, ainda que na superficialidade desses jogos e mal-entendidos de sociedade que costumam fazer toda a graça das comédias de costumes. Daí o diretor Oliver Parker, sem pretender nada além de uma adaptação eficiente do texto, ter optado por sustentar seu filme num elenco competente, a começar por Julianne Moore e Cate Blanchett, e à exceção da careteira Minnie Driver.
Wilde é o rei do chiste. "O Marido Ideal" se passa no final do século 19, em Londres, onde as pessoas "ou estão à procura de maridos ou tentando se esconder deles". E onde caberá ironicamente a um solteiro convicto (Rupert Everett), para quem "a moda é o que você veste e o que está fora de moda é o que os outros vestem" (a súmula do amor próprio), salvar o casamento do pressuposto marido ideal.
Uma viúva arrivista, radicada em Viena, volta a Londres para chantagear um jovem e promissor político cujo discurso na Câmara será decisivo para o envolvimento do governo inglês num empreendimento em que ela investiu seu dinheiro. A viúva tem uma carta que compromete o passado aparentemente honesto do político e, por consequência, seu casamento perfeito. É esse casamento -e a reputação do marido ideal- que seu amigo, o solteiro convicto (mas só até a última cena), terá de defender, sofrendo os mal-entendidos típicos de uma comédia de erros.
O que está em questão aqui, por meio de uma série de insinuações espirituosas, é o que escondem os casamentos e a política sob a égide da hipocrisia e da moral vitoriana. Da forma mais palatável, graças ao disfarce da comédia romântica. Em meio à ironia ácida que dá a esse "marido ideal" um passado escuso e corrompido, floresce um discurso singelo e compassivo sobre a irredutibilidade do amor: "o amor não se compra".
Ao final, tudo acabará bem, tudo será perdoado. Só que graças à mentira. E o que a peça termina dizendo, em sua aparência romântica, é talvez bem mais perverso e cínico do que o final feliz deixa ver: que só pode haver vida social pela mentira.
"A verdade é que menti", conclui a mulher inocente do político, enquanto todos riem de felicidade. Porque nos jogos de sociedade não pode haver verdade. Ela desregula as bases de todas as convenções e regras de comportamento. A verdade é incompatível com a moral que reivindica a verdade. Resta, então, a graça da mentira. Do teatro e das artes. A razão por que, no final das contas, todos acabam rindo sem saber bem do quê.


Avaliação:   


Filme: O Marido Ideal (An Ideal Husband) Produção: Inglaterra/EUA, 1999 Diretor: Oliver Parker Quando: a partir de hoje nos cines Cinearte 2, Pátio Higienópolis 1 e circuito

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