São Paulo, sexta-feira, 04 de fevereiro de 2005

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"EM BUSCA DA TERRA DO NUNCA"

Filme mostra processo criativo de J.M. Barrie

Marc Forster faz incursão pela fábula

Divulgação
Cena de "Em Busca da Terra do Nunca", de Marc Forster; o longa-metragem, indicado a sete Oscar, narra a vida de J.M. Barrie


MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Não, o criador de Peter Pan não era pedófilo. Pelo menos, essa foi a conclusão a que chegou o cineasta Marc Forster, 36, após pesquisar a vida do escritor escocês James Matthew Barrie (1860-1937), para seu filme "Em Busca da Terra do Nunca".
Em entrevista à Folha, de Chicago, Forster diz ter se baseado "em estudos sobre o escritor e no depoimento de familiares dos cinco garotos Llewelyn Davies" com quem Barrie conviveu e em quem se inspirou para inventar suas histórias sobre a Terra do Nunca.
"Não sou eu quem diz isso, são todos os envolvidos no caso. Os rumores sobre a suposta pedofilia de Barrie só surgiram bem depois de sua morte, por causa de umas fotografias que o escritor tirou dos meninos nus", argumenta o cineasta.
Mas, espere aí, não há no filme uma cena em que o próprio Barrie se depara com boatos insinuando que ele gostava muito mais de passar o tempo com os garotos do que com a mãe deles, Sylvia?
"Sim", admite Forster, "a cena foi incluída porque senti que deveria dar uma resposta às pessoas que me acusariam de ter fugido à questão, caso não a tivesse abordado".
A cena, portanto, dialoga muito mais com nossos tempos do que com a Inglaterra vitoriana de Barrie. Algo a ver com o escândalo de Michael Jackson? "Bem, o fato de o rancho de Michael chamar-se Neverland [Terra do Nunca] naturalmente ajudou", brinca Forster, aos risos.
Essa não foi a única liberdade que o cineasta tomou com a vida de Barrie. No filme, por exemplo, só há quatro meninos, enquanto de fato havia cinco. O escritor manteve íntima convivência com a família Davies, que o inspirou a escrever as aventuras de Peter Pan, mas, nessa época, o marido de Sylvia ainda estava vivo. Ele viria a morrer pouco depois, de câncer.
"Conversei com o roteirista e concordamos que, se incluíssemos o personagem do pai, teríamos de nos desviar da linha temática do filme; além disso, haveria duas mortes, o que julgamos ser um pouco excessivo."
No longa, é a mãe dos garotos quem adoece e morre, quando sabemos que ela viveu muitos anos após a estréia da peça sobre Peter Pan.


"Rumores sobre a suposta pedofilia de Barrie surgiram bem depois de sua morte, por causa de fotografias que o escritor tirou dos meninos nus"
Forster revela ter temido a reação dos críticos. "Pensei que odiariam o filme, quando vissem que não se tratava de um retrato fiel da vida de Barrie", admite. "Não quis rodar um documentário nem um filme biográfico. Minha intenção era fazer um filme sobre o processo criativo, sobre o poder que a imaginação tem de transformar a vida e a morte."
Segundo o cineasta, sempre que a vida está num dos pratos da balança e a arte no outro, ele pende para esta última. A opção estética pareceu-lhe mais condizente com o espírito do filme e com as idéias que Barrie vinha então desenvolvendo.
No final do século 19, o escritor ganhou notoriedade como jornalista em Nottingham e em Londres, ao publicar crônicas sobre sua terra natal, a Escócia. Para o teatro, criou farsas, tramas políticas e enredos sentimentais antes de levar ao palco a história do menino que não queria crescer.
Peter Pan aparece inicialmente numa história infantil de 1902 (a peça, de imenso sucesso, é de 1904). Segundo os biógrafos, o personagem nasceu de uma tragédia familiar. O irmão de Barrie morrera quando ele ainda era garoto. A mãe nunca se recuperou por completo do trauma. Para ela, o filho continuava vivo, sempre jovem. A morte o tornara paradoxalmente imortal.
A posterior convivência com os garotos Davies foi o agente combustor que faltava para que a máquina da criação se pusesse em movimento. A Terra do Nunca marca a vitória da imaginação sobre a realidade, do artifício sobre a vida. Mas, como o filme mostra numa das melhores cenas, o lar do Capitão Gancho e dos Garotos Perdidos também é o território da morte.
Essa incursão pelo terreno da fábula pode parecer estranha para quem conhece o cineasta por seu filme mais famoso, o realisticamente violento "A Última Ceia", que deu a Halle Berry o Oscar de melhor atriz por seu papel de mulher de um condenado à pena de morte. Mas este cineasta de origem alemã, criado na Suíça e radicado nos Estados Unidos, parece conviver bem com essas duas facetas -a realista e a fantástica.
O primeiro filme que viu no cinema foi "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola: "O que mais me impressionou foi a qualidade onírica da fita", diz ele sobre essa recriação moderna de "O Coração das Trevas" em meio à Guerra do Vietnã.
"Acho que não há muito disso em "A Última Ceia", mas é de algo que está sempre comigo, como no filme em que estou trabalhando agora."
Ele refere-se a uma comédia com Will Ferrell e Emma Thompson, sobre um auditor de imposto de renda que ouve a voz de um narrador lhe dizendo que ele vai morrer. O título? "Stranger than Fiction"; em português, literalmente, "Mais Estranho do que a Ficção". Nada mais apropriado.


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