São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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ARTIGO

"Pro Dia Nascer Feliz" nos defronta com nosso futuro

Divulgação
Valéria, aluna de escola pública em Manari (PE), uma das cidades com menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país


FERNANDO MEIRELLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A universalização do ensino no Brasil fica muito bem nas estatísticas: 97% das crianças freqüentam escolas. Mas, ao assistir "Pro Dia Nascer Feliz", dirigido por João Jardim, em cartaz desde a última sexta, a certeza que fica é que o acesso à escola não significa muito mais além do acesso em si.
Escolas destruídas, professores sem capacitação, alunos desmotivados são o resultado de uma opção de ensino que resolveu ser abrangente, pagando o preço de nivelar por baixo.
É sobre isso esse brilhante filme -sobre escolas que fingem ensinar alunos que fingem aprender. É também um filme sobre a viabilidade do nosso país e deixa claro que ela depende muito menos de PACs do que de um investimento sólido e prioritário em educação. Grande novidade.
Um estudo do próprio Ministério da Educação concluiu que o investimento de 4,3% do PIB é insuficiente para resolver este problema secular. Segundo o mesmo estudo, seriam necessários 8% do PIB para tal. Não bastasse isso, o foco do investimento em educação no Brasil privilegia a elite, ao investir pesadamente no ensino superior.
Enquanto o Prouni serve de bandeira eleitoral, o Fundep mal saiu do papel.
Mas o filme de João Jardim não segue por esta trilha. Conversando com alunos, professoras e diretoras sobre o dia-a-dia de escolas em lugares tão distantes quanto Manari, no sertão de Pernambuco, ou Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, e sem nunca ser panfletário ou óbvio, o filme encontra um viés próprio para nos colocar frente a frente com o nosso futuro.
Numa das seqüências mais dramáticas, assistimos a uma reunião de conselho onde professores decidem se devem ou não aprovar um determinado aluno, sabidamente sem as qualificações para passar de ano. Se o fizerem, certamente prejudicarão a futura turma da qual ele faria parte. Por outro lado, se reprovado, o aluno abandonará a escola e, por já estar com um pé no crime, certamente fará sua opção definitiva. Como resolver tal dilema? Sinuca de bico.
Numa outra seqüência, uma diretora diz que é difícil administrar uma escola onde os professores, assim como deputados, encaram seu número máximo de faltas permitidas por lei como um direito. Os alunos reclamam que, com estas faltas, fica impossível aprender.
A câmera de João vai até uma professora faltosa que confessa que, às vezes, fica em casa por não ter condições psicológicas de ser agredida sistematicamente. Sinuca de bico outra vez.

Equilíbrio do impasse
Seria muito mais simples se os culpados fossem apontados e condenados, como faz Michael Moore, mas João, que também é o montador do filme (aliás foi pela montagem que ele chegou à direção), não toma nenhum partido. E é justamente o equilíbrio do impasse que nos tira o fôlego.
O contraponto desta situação está numa seqüência rodada no Colégio Santa Cruz, escola particular de elite em São Paulo. Os alunos ali têm o tal privilégio de saltar do drama (da sobrevivência) para a tragédia (da existência humana), como diria Bertrand Russel.
Apesar da coincidência de situações com alunos de escolas da periferia, estão amparados, num ambiente propício ao seu pleno desenvolvimento.
Fica claro que serão estes os alunos que ocuparão as melhores universidades do país, em geral públicas, e revela-se que, perversamente, o sistema de ensino que deveria promover a inclusão social acaba sendo um perpetuador das diferenças.
Não me lembro de outro documentário com tamanha capacidade de nos fazer refletir sobre nosso futuro e ainda por cima emocionar como poucos filmes de ficção são capazes.
Achei que eu pudesse estar meio frágil no dia em que assisti a "Pro Dia Nascer Feliz", mas depois constatei que não fui o único a pagar o mico de derrubar lágrimas no cinema.
Em meio a questões sobre ensino, o filme ainda consegue mergulhar no universo dos adolescentes, com toda a sua carga de incertezas e esperanças diante do mundo adulto no qual estão entrando. Como uma lâmina precisa, o filme corta a alma.

FERNANDO MEIRELLES , 51, é cineasta. Diretor de "Cidade de Deus" (2002) e "O Jardineiro Fiel" (2005), que juntos tiveram oito indicações ao Oscar, ele filmará neste ano "Ensaio Sobre a Cegueira", a partir da obra de José Saramago.


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