São Paulo, quinta-feira, 04 de fevereiro de 2010 |
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NINA HORTA Da gaveta de cartas
ACHEI UMA carta velha, minha, (meu Deus, no tempo em que se escrevia cartas) para Renata Zago, que estava prestes a defender uma tese. Acho que era um convite para que ela fosse a Paraty e me trouxe um bafo do fim dos 70. "...Renata, todos os lugares-comuns são obrigatórios aqui. Peixe é um lugar-comum, tão incomum em São Paulo. O mercado de manhãzinha é só faíscas de robalos, espadas, pescadas, paratis, camarões grandes e um cação de 50 kg, decepado, sem cabeça, boquiaberto. O cais tem um brilho parado de meninos catando siri, com uma luz amarelada, dourada, que é só daqui. Paraty é singela. Simples. Às vezes, até feia. Mas um dengo escorrido pela ruas e subindo em primavera pelas casas. Você gosta de camarão, Renata. Então vou fazer ensopado, os bichos são tão frescos que é até difícil arrancar a casca. Posso também providenciar um robalo na brasa, sem tempero nenhum, deitado sobre umas ervas cheirosas. Logo que você chegar, vou te iniciar nos paratis. Bem limpos, enxutos, salgados e postos no defumador com três pás de bétula, sobre o fogo, por 15 minutos. Então passamos manteiga no pão preto, e o peixe vai por cima. Você vai se esquecer da defesa de tese e, aí, vai esquecer também que é mãe judia, e vou te ensinar a limpar lulas. Talvez não goste desse lado azul daqui, mas tem o verde, o sítio em si. É úmido, os jardins arrebentando de caipiragem, borboletas tontas esbarrando umas nas outras. É um sítio sem juízo, com galinhas gordas em volta da casa, uma ou outra vaca e uns patos e marrecos passeando em dupla, muito sérios como casais que vão à missa. Às vezes com o coração cortando e a boca salivando, pega-se um de quatro meses, tempera-se com sal, alho e limão, bem furadinho. Óleo na panela e vai-se refogando, pingando água para dar caldo grosso. Escorre-se a gordura e na hora de servir espreme-se nele o suco de uma laranja. De manhã, uma coalhada branca que não é dura nem mole, mal começa a partir. Temperamos com açúcar mascavo ou mel, ou pode tomar pura como está. Muitas vezes o biscoito frito substitui o pão que esquecemos de comprar, ou pão velho com manteiga, na chapa, também é bom. O ovo tem a gema alaranjada, da cor do mamão em talhadas, mamão caipira, doce. Tenho certeza que adoraria ver fazer farinha na própria casa de farinha. O processo é primitivo, desde a lavagem da mandioca no cocho até o ponto final do tacho enorme e da poeira de farinha assoprando os cabelos, os olhos, os bigodes. E depois, no almoço, essa farinha no fundo do prato, três pimentas amassadas e o feijão grosso da Zeny, uma inexplicável especialidade. Não é tudo pesado, tem abobrinha batida e couve passada na frigideira num susto, e lá na zona de Paraty é impossível escapar das bananas, em pencas, em toneladas, verdes, amarelas, prata e maçã e ouro. As receitas de bananada e outros doces feitos com elas são subjetivas como "mexer até ficar com cor bonita", "botar açúcar até cheirar doce" e esbanjar em fartura juntando "uma lágrima de água". Mas se nada disso te agradar, vamos ao mundo. Há o bar do Coupé, com um lombo magro e bom, licor de jenipapo e figo no Toronto, canelloni de ricota no Canoas. E a pensão da Ondina... Havia as panquecas do Mário, que nasceram na Semana Santa e morreram no Divino. E, sobretudo, só lá você, com a cabeça cheia de teses e antíteses, só lá poderá encontrar, aturdida e deslumbrada, não o infante dom Miguel que levantava os Jacinthos pela rua, mas um dom João, o nosso dom João, também escanhoado, talvez de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, galhofando... Pois é, Renata, estou esperando." ninahorta@uol.com.br Texto Anterior: Bom e barato: Parrilla SP atrai com bons cortes argentinos Próximo Texto: Lado a lado: A vida dos outros Índice |
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