São Paulo, quarta, 4 de fevereiro de 1998

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Compilações geram acomodação nos anos 90

da Reportagem Local

Gravadoras e artistas parecem trabalhar em comum acordo nestes anos 90. As primeiras dizem que precisam da certeza que os anos de estrada proporcionam para lançar compilações ao vivo de seus artistas; esses se acomodam no formato e multiplicam seus rendimentos sem grandes cargas de esforço criativo.
É curioso notar que isso é uma tendência relativamente recente, ao menos no Brasil. Nos 60 e 70, disco ao vivo era outra história.
Um marco fundador da história "ao vivo" da MPB pode ser encontrado em "Rosa de Ouro" (65), registro sem equivalente de estúdio dos primeiros passos de Clementina de Jesus e Paulinho da Viola (esse como mero coadjuvante) no mundo do mercado.
Naqueles tempos, Maria Bethânia, Elizeth Cardoso, Nara Leão, Elis Regina e Jair Rodrigues lançavam discos quase totalmente inéditos -o que, mais que aplausos ou "calor", justificava suas colossais deficiências técnicas.
Nos 70, também no universo "ao vivo", os tropicalistas tomaram conta do cenário. Caetano, Gil e Gal lançaram trabalhos que em nada se aproveitavam de seus esforços de estúdio.
"Fatal" (Gal), "Temporada de Verão ao Vivo na Bahia" (Caetano, Gal e Gil), "Ao Vivo" (Gil), "Doces Bárbaros" (Caetano, Gal, Gil e Bethânia) eram álbuns inéditos, tanto quanto vigorosos.
À mesma época, Maria Bethânia se firmava como cantora de palco por excelência, engrandecendo um formato incomum (muitas e curtíssimas canções interligadas sem interrupção) em pérolas como "Rosa dos Ventos", "Drama 3º Ato" e "A Cena Muda".
Os encontros eram também razão de ser das sofríveis gravações ao vivo. O show de despedida de Caetano e Gil do Brasil, rumo ao exílio, foi registrado em "Barra 69" (só lançado em 72, de tão indigente que era tecnicamente).
Todos se relacionavam. Cantaram juntos Caetano e Chico, Chico e Bethânia, Bethânia e Caetano, Gil e Rita Lee, sempre com repertórios que davam voltas ao redor do óbvio. Pode-se dizer que do atrito se produzia o fogo que ia incendiar trabalhos de estúdio.
Em 1972, Jorge Mautner fez sua estréia com "Para Iluminar a Cidade", disco ao vivo só de músicas que o Brasil não conhecia.
Abria-se aí um flanco para os "malditos" e "independentes". Por essa linha passaram Itamar Assumpção, Cida Moreira (nos 80), Jards Macalé, Rumo, Titane, Chico César (nos 90).
No meio termo entre o mainstream e o "maldito", Novos Baianos e o quarteto Zé Ramalho/Geraldo Azevedo/Alceu Valença/Elba Ramalho saem da linha dos 90 e fazem da união a força para revigorar carreiras não tão estáveis.
De resto, dos 80 em diante, tudo se estabilizou. Houve os documentários de artistas de comprovado polimento de palco -João Gilberto, Jorge Ben Jor, Baby Consuelo, Cássia Eller- e os daqueles que quiseram porque quiseram ter também seus "ao vivo".
O rock entrou no circuito -Lobão, Marina, Titãs, Paralamas, RPM. A MTV entrou no páreo tornando infalível a fórmula "unplugged". Marisa Monte tornou-se exceção da exceção, estreando ao vivo por uma major e intercalando com disciplina (até agora) discos ao vivo e em estúdio.
Em "Barulhinho Bom" (96) -apesar do CD 2, de estúdio, que acompanha o pacote-, tudo já se adequara à facilidade do formato "disco que antecede show que antecede disco ao vivo", que hoje domina a cena e vende como água.
A coisa desemboca, agora, em "Quanta Gente Veio Ver" (oh, trocadilho indizível), de Gil, CD que se perde pela redundância.
Vem de um show que é um primor de competência e eficiência, apenas para macular sua lembrança. Em disco, "Quanta" encolhe virtudes -o apuro técnico, o entrosamento dos músicos- enquanto amplifica defeitos.
A outrora gigantesca voz de Gil aparece mais combalida que nunca, as tentativas à Black Rio da banda parecem insuficientes, canções novas ("Quanta", "Pela Internet") revelam-se mais frouxas que pareciam, os clássicos ("Refavela", "Cérebro Eletrônico") se avexam até diante dos acústicos de 1994, uma hedionda sessão Bob Marley infesta parte do CD.
Salva o embrulho o quinhão "tecnocarnaval", de três faixas inéditas "dirigidas" pelo neotecno Lulu Santos. Não são nenhum Chemical Brothers, mas dão lavada na turma do axé ("Livro", do outro baiano, incluso).
Enquanto isso, Caetano, Paulinho, Cássia Eller, Rita Lee, Milton e outros tantos se esbaldam na maximização do processo de criação disco/show, multiplicando as cédulas como se multiplicam as versões de "Sampa" e "Palco".
O tempo em que poderiam estar absorvidos com criação é gasto na turnê do disco do show da turnê do disco. E cada vez mais o consumidor tem de ouvir, ao fim de cada álbum: "Por que parou? Parou por quê?". Sabe Deus. (PAS)



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