São Paulo, Quinta-feira, 04 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Incerteza acirra apetite por certezas

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

O mercado de previsões é regido por uma lógica curiosa. Se o que se pode prever quase nunca é aquilo que se deseja saber, o que se deseja saber quase sempre é o que não se pode prever.
Quanto mais imprevisível nos parece o futuro, mais intensa se torna a ansiedade e a demanda por previsões seguras sobre o amanhã. Quanto menor a capacidade e a condição objetiva de se fazer prognósticos confiáveis, maior a falta subjetiva que eles nos fazem.
Os extremos se alimentam. O que falta, resplandece. É como se o desamparo da incerteza -uma variante mental da fome- tivesse o dom de despertar em nós um brutal apetite por respostas e certezas.
Três exemplos, provindos de fontes e situações quase tão díspares quanto se pode conceber, ilustram com clareza essa lógica.
O primeiro é o extraordinário relato feito por Caetano Veloso, na terceira parte de "Verdade Tropical", sobre sua experiência como preso político num quartel de pára-quedistas do Exército no final dos anos 60.
A incerteza era aguda. Morte, tortura, confinamento prolongado: tudo podia acontecer. Preso sem mandato, acusação formal ou julgamento, Caetano conta em detalhes como, premido pelo desespero e impotência diante de um mundo hostil, ele acabou elaborando um intricado "sistema interno de controle do devir" com o propósito de prever o seu destino e domar o ambiente caprichoso e terrivelmente ameaçador que o cercava.
À aleatoriedade absurda dos acontecimentos correspondia a irracionalidade da sua demanda por certezas. "Eu agora percebia que um esquema de números, imagens e perguntas era capaz de me dar acesso ao conhecimento do que estava por vir, se lido com perícia". E perícia, é claro, não faltava.
Festa da magia, orgia das superstições. Qualquer fiapo de sinal -uma barata fugidia no chão do banheiro, "Hey Jude" tocando no radinho de pilha do soldado- podia conter a chave do amanhã: iluminar o peito de esperança ou arruinar o dia. O hieróglifo do futuro estava escrito, em letra miúda, na cartilha semiótica do quartel-universo. Era só decifrar.
Uma cadeia fantástica de augúrios, rituais e premonições encarcerou a imaginação do poeta e ele passou a temer que, caso se livrasse dela, seria punido pelo desrespeito às suas leis. "Foi desse modo", conta Caetano, "que cheguei à minúcia de prever que receberia a ordem de liberação no alto da colina, depois do meio-dia mas antes da tarde cair, e no ato de ingerir um alimento".
Outro exemplo notável da demanda por certezas incertas aparece no relato do economista matemático americano, Kenneth Arrow, sobre sua experiência como membro de uma equipe seleta cuja função era fazer previsões meteorológicas de longo prazo durante a Segunda Guerra Mundial.
O desafio da equipe era modelar a dinâmica do tempo e fazer prognósticos sobre as condições climáticas ao longo do mês seguinte, de modo a permitir um planejamento adequado das operações aéreas e navais em curso. se funcionasse, os benefícios seriam palpáveis.
Acontece, porém, que quando os estatísticos submeteram os prognósticos feitos a testes empíricos rigorosos, eles verificaram que as previsões dos modelos matemáticos estavam sendo tão boas (ou ruins) quanto as que teriam sido obtidas ao acaso. Uma roleta poderia fazer o serviço tão bem quanto aquela plêiade de cérebros.
Diante dessa evidência, a equipe se convenceu de que o seu esforço vinha sendo inútil e requereu às autoridades militares que os trabalhos de previsão meteorológica de longo prazo fossem suspensos.
A resposta ao pedido, relata Arrow, surpreendeu a todos. "O Alto Comando", dizia o comunicado, "está perfeitamente ciente de que as previsões não prestam. Entretanto, elas são indispensáveis para fins de planejamento".
A mente odeia o vácuo. Quando o futuro é incerto, mas nos interessa de perto, do que não somos capazes para aliviar a sensação de vazio -a fome angustiante e devoradora- da incerteza?
O jovem Caetano agarrou-se ao seu "sistema interno" de insetos e canções; a cúpula militar americana à autoridade (expressamente desautorizada) da ciência. Ambos entreviam a precariedade do que faziam. Mas o que os dois sentiam é que qualquer certeza, por mais arbitrária que fosse, era melhor que a vertigem de uma absoluta incerteza.
O terceiro exemplo se refere, como não poderia deixar de ser, à turbulência financeira das últimas semanas.
Não é fácil ser economista nos dias que correm. Se fosse atender a todos os pedidos de entrevista com que tenho sido bombardeado, não teria feito outra coisa. Quanto mais caótica a conjuntura, maior a demanda por respostas firmes e previsões afiadas. E eu que pretendia estudar filosofia nas férias de verão... Precisei acionar o meu "circuit-breaker".
O economista nessas horas vira uma espécie de pára-raios da ansiedade coletiva. Parentes distantes telefonam querendo saber onde pôr o dinheiro. O motorista de táxi pergunta se é hora de quitar a prestação do carro. "É verdade que vão mexer na poupança?", dispara um desconhecido na fila do cinema. Na saída do estúdio de TV, a perguntinha aflita em "off": "O dólar continuar subindo, professor?"
Procuro lidar com isso sem perder a calma. A impressão que tenho é que a opinião pública está para as certezas dos economistas assim como Caetano estava par os augúrios sutis do presídio ou os militares americanos para as previsões refinadas da equipe de Arrow.
Mais do que qualquer outra coisa, suspeito, o que as pessoas buscam nessa hora é preencher de algum modo o vácuo de um futuro radicalmente incerto -conter o "overshooting" da ansiedade, ancorar a imaginação.


Texto Anterior: Festival de Berlim: Brasil não concorre a Urso de Ouro 99
Próximo Texto: Cinema: "Central do Brasil" vai disputar o César
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.