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Transe capturado
Passados 23 anos da morte de Glauber Rocha, documentário sobre o cineasta baiano, realizado por Silvio Tendler, chega aos cinemas e apresenta depoimentos e cenas históricas
MARCIO PINHEIRO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Um dos maiores segredos envolvendo Glauber Rocha (1939-1981) está para ser revelado a partir de amanhã.
Desde a morte do cineasta baiano, o documentarista Silvio Tendler, 53, foi impedido de fazer o
documentário "Glauber, o Filme,
Labirinto do Brasil", que finalmente entra em cartaz. À época,
dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber, não suportou assistir às imagens do enterro do filho e embargou o longa.
Ela soube pelos jornais que Tendler filmara o enterro do filho
(não tinha percebido que estava
com uma câmera) e que pretendia usá-las em um documentário.
Ao tomar conhecimento da idéia,
Lúcia impediu a finalização e o
lançamento do filme. O documentarista
acatou e
guardou o
segredo.
Em 1999,
dona Lúcia mudou
de idéia.
A idéia de fazer o filme surgiu no dia em
que Glauber morreu.
"Fui na casa de saúde
onde ele estava internado, aí o Cacá [Diegues] e o Joaquim Pedro [de Andrade] me pediram para filmar o
velório e o enterro para fazer uma
homenagem a ele. Eles queriam
que fosse alguém da minha geração", explica Tendler, que ganhou, com o longa, os prêmios de
melhor filme pelo júri popular e
da crítica no Festival de Brasília de
2003.
Tendler diz ter aceito a recusa
de dona Lúcia não só por respeito
à dor, mas "para não prejudicar a
liberação de "Di" [curta-metragem
sobre o pintor Di Cavalcanti; leia
abaixo], que estava sob embargo
da Justiça. E qualquer coisa que eu
falasse sobre Glauber daria razão
à censura de "Di'".
Dona Lúcia diz que não houve
uma razão específica para a liberação do filme tantos anos depois.
"Não sei por que resolvi liberar.
As pessoas falavam comigo, pediam e, então, um dia, resolvi [liberar]", explica ela, que ficou 18
anos sem contato com Tendler.
"Sempre fui a festivais de cinema
e sempre o encontrava, mas não
falava com ele."
Tendler diz que essa demora foi
positiva. "Se tivesse finalizado o
documentário naquela época, teria ficado bem diferente. É doloroso esse tempo de espera, mas
acho que dona Lúcia tem razão.
Ficou melhor."
No filme, para mostrar "quem é
Glauber Rocha", Tendler une
imagens de entrevistas do cineasta, depoimentos de gente como
Darcy Ribeiro (1922-97), Nelson
Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, Nelson Motta, José Celso
Martinez Corrêa...
Não bastasse o problema da demora em obter as imagens, Tendler teve de lidar com problemas
técnicos. Os rolos de fita de áudio
sumiram quando as imagens do
enterro de Glauber foram da Embrafilme para a Cinemateca Brasileira. Segundo Tendler, a perda
mais dolorosa foi o depoimento
de Joaquim Pedro de Andrade,
"que em 1981 disse que os cineastas estavam morrendo de câncer;
e ele morre, oito anos depois, de
câncer, sem saber".
Quebra-cabeça
Assim que teve acesso às imagens, em 1999, Tendler não sabia
por onde começar. "Não tinha nada na cabeça [para o documentário]. Cinema é construção, você
vai fazendo. Pra mim é como
montar um quebra-cabeça. Eu
vou descobrindo o filme à medida
que vou fazendo. Não sei escrever
roteiro de cinema."
Agora, 18 anos após a morte de
Glauber, "teria cabimento fazer
um filme sobre velório", afirma o
diretor, que se refere ao cineasta
no presente. "Aí, a homenagem
virou um filme do Glauber vivo, e
não dele morto.
Glauber é inapreensível; ele
está sempre imprevisível."
Para Tendler,
falar sobre Glauber é falar sobre alguém que
quebrou padrões ao fazer
cinema no Brasil. "Imaginar o cinema antes da geração do Glauber é imaginar a
chanchada, os dramalhões
da Vera Cruz. Ele faz um cinema realista, fora dos estúdios."
Além do lançamento de "Glauber, o Filme", Silvio Tendler está
em dois outros projetos. Realiza
"Utopias e Barbáries", para o qual
já entrevistou alguns ícones do cinema europeu de esquerda dos
anos 50, como Francesco Rossi,
além de um longa sobre o geógrafo Milton Santos, morto em 2001.
Tendler ressalta também o
Glauber documentarista ("Maranhão 66", de 1966, "Amazonas,
Amazonas", de 1965, entre outros). Para o diretor, Glauber
abriu caminho "para muita coisa
que está aí hoje, como "Cidade de
Deus", um filme que fala da realidade social brasileira. Esse é o tipo
de cinema que ele prega".
No documentário, Tendler acaba "popularizando" a figura de
Glauber, mas não suas obras. "Ele
não fazia os filmes com a meta de
atingir público. Ele tinha a meta
de falar o que ele quisesse falar."
"Di" na internet
Além de liberar cenas inéditas
do enterro de Glauber para o documentário de Tendler, a família
Rocha vai tornar públicas as cenas
de outro velório. Trata-se do curta-metragem "Di", no qual Glauber filma o velório do pintor modernista Emiliano Di Cavalcanti
(1897-1976) a seu pedido.
Desde 1977 o filme está proibido
de ser exibido pela Justiça a pedido da filha do pintor, Elisabeth Di
Cavalcanti. Uma saída jurídica,
contudo, foi encontrada por João
Rocha, sobrinho de Glauber. Ele
vai disponibilizar o filme em um
provedor internacional, pois o
processo não impede que o filme
seja visto fora do país, segundo
seu advogado, José Mauro Gnaspini. "Di" já ganhou o prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes em 1977. A inauguração do site que abrigará o filme está programada para abril.
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