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CONTARDO CALLIGARIS
A arte do retrato
Terça -feira, em Nova York.
Hoje, uma grande rodada de
eleições primárias escolherá o
candidato democrata à Presidência americana. É um bom dia para tomar café e discutir política
no clube da Universidade Yale,
na rua Vanderbilt: na sala principal, ao lado do bar, tronam os retratos dos ex-alunos da universidade que foram presidentes dos
EUA, Gerald Ford, George Bush
(o pai) e Bill Clinton. O retrato de
George W. Bush (o filho), também
ex-aluno, chegará no fim do
mandato.
Os ex-presidentes são representados à paisana: nada de pingüim, nada de faixa, nem mesmo
uma gravata com as cores da
bandeira. Os retratos são acadêmicos e não fazem o meu gosto.
Mas não é só isso: eles são pouco
palatáveis por uma outra razão.
Todos nós temos, no mínimo,
dois corpos: um corpo público ou
político e um corpo privado. O
primeiro é o corpo que apresentamos aos outros no exercício de
nossas funções sociais: o enfermeiro e a médica de jaleco branco, o homem de negócios de terno
escuro, o professor de paletó xadrez e gravata borboleta, a roqueira de calça apertada e cabelo
punk. O segundo é o corpo que
veste a camiseta do domingo, o
couro e a lingerie da noite licenciosa ou a nudez dos enlaces
amorosos. E é banal que tenhamos mais de um corpo público e
mais de um corpo privado. Nota:
aprendi a reconhecer a pluralidade de corpos que habitamos lendo
(anos atrás, sorte minha) "Os
Dois Corpos do Rei", de Ernest
Kantorowicz (felizmente traduzido pela Companhia das Letras).
Mas voltemos ao clube nova-iorquino: os retratos dos três ex-presidentes são medíocres porque,
apesar de não mostrarem explicitamente as fardas e os atributos
do poder, eles conseguem a duvidosa façanha de apresentar corpos perfeitamente políticos.
Quem se der o trabalho de contemplá-los receberá apenas esta
mensagem: os três aqui retratados foram poderosos do jeito discreto e austero que convém a um
ex-aluno de Yale. Para um olhar
moderno, não basta; hoje, espera-se que qualquer retrato levante a
suspeita de que, atrás do corpo
público, há o enigma de desejos
privados. Estamos interessados
em indivíduos que sejam gente,
não em fardas, que nos parecem
sempre vazias.
Aliás, é por isto que todos os
candidatos exibem filhos, mulheres e parentes: querem nos mostrar que eles têm um corpo privado, como nós. Claro, há corpos
privados que a opinião média julga incompatíveis com certos corpos públicos: será que aceitaríamos um presidente que, à noite,
vestisse calcinha e cinta-liga para
encontrar seu amante? Provavelmente não, mas é indubitável que
desconfiaríamos de um sujeito
que quisesse nos convencer de que
seu corpo é inteiramente político
e público.
Por essas razões, um retrato que
apresenta só o corpo público do
retratado é, aos nossos olhos, simplesmente ruim.
Acabo de ler "Portraits, A History" (retratos, uma história), de
Andreas Beyer. O original em alemão saiu em 2002; a tradução em
inglês é do fim do ano passado.
O livro, que é maravilhosamente ilustrado e pesa seis quilos, narra de maneira magistral a evolução da arte do retrato.
Beyer confirma esta tese estabelecida em 1860 por Jacob Burkhardt (em "Cultura do Renascimento na Itália"): até o começo
do Renascimento (primeiras décadas do século 15), a pintura ocidental não produziu retratos de
indivíduos. Para os gregos, os romanos e os homens medievais, retratar significava mostrar não a
unicidade do sujeito retratado,
mas sua função social, seu status,
seu lugar na hierarquia do poder.
Por exemplo, o retrato de um imperador romano não se preocupava com a reprodução dos traços
distintivos de sua pessoa, mas
tentava criar uma imagem que
expressasse a majestade da autoridade absoluta, da sabedoria e
talvez do sagrado. Reconhecer o
imperador no retrato significava
reconhecer seu poder, muito mais
que suas feições.
A partir do século 15, os retratos
começam a insistir na singularidade dos sujeitos retratados. A
mudança se explica assim: a modernidade valoriza o indivíduo
mais do que a comunidade. Portanto, espera-se que o retrato moderno revele a verdade do corpo
privado, único e inconfundível. A
função social do sujeito (seu corpo
público), no melhor dos casos, é
uma espécie de mentira necessária.
No retrato antigo, os atributos
da função eram mais importantes
que os traços singulares do sujeito
porque, antes da modernidade, o
sujeito parecia ser definido perfeitamente (ou quase) por sua função social. Se, ao retratar César,
mostrei que ele é imperador, revelei o essencial de sua pessoa. Ao
contrário, se, ao retratar um presidente de hoje, eu só conseguir
mostrar que ele é presidente, o retrato será propriamente um fracasso.
Para nós, modernos, a função
social não resume nem define o
indivíduo que a preenche. Quando contemplamos um retrato, o
que nos interessa é aquela parte
do sujeito retratado que não cabe
na farda do corpo público.
A Antigüidade era o reino das
fardas. O homem clássico conhecia uma (suposta) paz de espírito
porque sua função na ordem social lhe bastava para responder à
pergunta: "Quem é você?".
A modernidade é o mal-estar
produzido pela descoberta de que
um corpo privado se agita atrás
das fardas, que não definem mais
nossa pessoa. A esse descompasso
devemos nossa pequena liberdade.
@ - ccalligari@uol.com.br
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