São Paulo, sábado, 04 de março de 2006

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RODAPÉ

Mutis, os poetas e a gávea

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Enquanto a obra de Gabriel García Márquez está fincada na paisagem fantástica e alegórica de Macondo, o povoado de "Cem Anos de Solidão", de inequívocas raízes latino-americanas, Álvaro Mutis, seu companheiro de geração, preferiu a âncora móvel de um único personagem, prenhe de ressonâncias alegóricas.
Trata-se do vagamundo Maqroll, o Gavieiro, que, ao longo dos anos, migrou dos poemas, onde primeiro apareceu, para a narrativa. Ele é o autor do "diário encontrado" que se confunde com a espinha dorsal de "A Neve do Almirante", de 1986, recém-lançada em tradução brasileira. Neste relato de uma viagem rio acima, têm igual peso os incidentes de percurso e a perspectiva singular do seu protagonista, em meio ao desconcertante comportamento humano, à pujança ameaçadora da natureza, o confronto com o risco da morte e o constante torvelinho interior.
O próprio autor explica que Maqroll é o tipo "no topo da gávea, no trabalho mais belo que se pode fazer no barco. Lá, entre as gaivotas, frente à imensidão e na mais absoluta solidão, Maqroll é a consciência do barco. Os de baixo são um bando de cegos. O Gavieiro é o poeta, o que anuncia a todos". Nascido em 1922, em Bogotá, filho de diplomata, Mutis passou seus anos de formação entre Bruxelas e as fazendas de café da família, em Tolima, a região da Terra Quente colombiana. As constantes travessias transatlânticas moldaram-lhe o gosto pelas aventuras passadas no mar, de sabor conradiano. Como no autor de "Lord Jim", em sua obra, as viagens e o confinamento prolongado evidenciam com concentração exemplar a natureza e a história humanas. Conferem densidade máxima ao silêncio e às falas, aos afetos e às relações de poder, propiciando breve rito de passagem da inocência ao ceticismo.
Construído sob o signo da infância mítica (o pai morreu quando tinha nove anos) e de um sentimento de exílio perpétuo, de perda original do sentido do mundo -que, segundo ele, apenas a literatura arranha, sem apanhar-, o universo literário de Mutis é refratário à cor local e ao excesso de referências precisas a paisagens e processos históricos no primeiro plano, ainda que estes sejam presença constante em sua narrativa.
Daí a natureza misteriosa e onipresente de Maqroll, cuja biografia criou obscura, marcada pela variedade de portos e lugares, pela vivência de aventuras coloridas (mulheres, marinha mercante, contrabando, negócios lícitos e escusos), mas pouco explicitadas.
Mutis forjou um personagem que nasce velho, próximo da morte, mas com o empenho suficiente para meter-se em novas viagens, perseguidor de quimeras, apesar das ilusões desfeitas.
Daí o caráter de viagem iniciática em negativo que ronda "A Neve do Almirante". Em busca do lucro fácil das madeireiras ao pé da cordilheira, o que Maqroll encontra é a ocasião para remoer as experiências passadas com a máxima desconfiança: "Ninguém sabe nada de ninguém. Que a própria palavra é um engano, uma armadilha que encobre, disfarça e sepulta o precário edifício de nossos sonhos e verdades, todos assinalados pelo signo do incomunicável". Combinar estes lampejos aos fragmentos de experiência e traduzi-los na escrita é o que o mantém vivo.
A forma do diário cai como uma luva para a instabilidade desta incursão, subvertendo a lógica natural das narrativas de viagens, aqui, traduzida em registro da intimidade, como formula o protagonista: "Quando relato meus vaivéns, minhas quedas, meus tolos delírios e minhas secretas orgias, o faço unicamente para deter, já quase no ar, dois ou três gritos bestiais, desgarrados grunhidos de caverna com os quais poderia dizer mais eficazmente o que na verdade sinto e o que sou". A perspectiva híbrida, de Mutis, cosmopolitismo cindido entre as memórias citadinas e européias e a dos cafezais colombianos, matiza esta verdade e garante o interesse de seu Maqroll.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

A Neve do Almirante
    
Autor: Álvaro Mutis
Tradução: Luís Carlos Cabral
Editora: Record
Quanto: R$ 28,90 (212 págs.)


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