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RODAPÉ
Mutis, os poetas e a gávea
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Enquanto a obra de Gabriel
García Márquez está fincada
na paisagem fantástica e alegórica
de Macondo, o povoado de "Cem
Anos de Solidão", de inequívocas
raízes latino-americanas, Álvaro
Mutis, seu companheiro de geração, preferiu a âncora móvel de
um único personagem, prenhe de
ressonâncias alegóricas.
Trata-se do vagamundo Maqroll, o Gavieiro, que, ao longo
dos anos, migrou dos poemas,
onde primeiro apareceu, para a
narrativa. Ele é o autor do "diário
encontrado" que se confunde
com a espinha dorsal de "A Neve
do Almirante", de 1986, recém-lançada em tradução brasileira.
Neste relato de uma viagem rio
acima, têm igual peso os incidentes de percurso e a perspectiva
singular do seu protagonista, em
meio ao desconcertante comportamento humano, à pujança
ameaçadora da natureza, o confronto com o risco da morte e o
constante torvelinho interior.
O próprio autor explica que Maqroll é o tipo "no topo da gávea,
no trabalho mais belo que se pode
fazer no barco. Lá, entre as gaivotas, frente à imensidão e na mais
absoluta solidão, Maqroll é a
consciência do barco. Os de baixo
são um bando de cegos. O Gavieiro é o poeta, o que anuncia a todos". Nascido em 1922, em Bogotá, filho de diplomata, Mutis passou seus anos de formação entre
Bruxelas e as fazendas de café da
família, em Tolima, a região da
Terra Quente colombiana. As
constantes travessias transatlânticas moldaram-lhe o gosto pelas
aventuras passadas no mar, de sabor conradiano. Como no autor
de "Lord Jim", em sua obra, as
viagens e o confinamento prolongado evidenciam com concentração exemplar a natureza e a história humanas. Conferem densidade máxima ao silêncio e às falas,
aos afetos e às relações de poder,
propiciando breve rito de passagem da inocência ao ceticismo.
Construído sob o signo da infância mítica (o pai morreu quando tinha nove anos) e de um sentimento de exílio perpétuo, de perda original do sentido do mundo
-que, segundo ele, apenas a literatura arranha, sem apanhar-, o
universo literário de Mutis é refratário à cor local e ao excesso de referências precisas a paisagens e
processos históricos no primeiro
plano, ainda que estes sejam presença constante em sua narrativa.
Daí a natureza misteriosa e onipresente de Maqroll, cuja biografia criou obscura, marcada pela
variedade de portos e lugares, pela vivência de aventuras coloridas
(mulheres, marinha mercante,
contrabando, negócios lícitos e
escusos), mas pouco explicitadas.
Mutis forjou um personagem
que nasce velho, próximo da
morte, mas com o empenho suficiente para meter-se em novas
viagens, perseguidor de quimeras, apesar das ilusões desfeitas.
Daí o caráter de viagem iniciática em negativo que ronda "A Neve do Almirante". Em busca do
lucro fácil das madeireiras ao pé
da cordilheira, o que Maqroll encontra é a ocasião para remoer as
experiências passadas com a máxima desconfiança: "Ninguém sabe nada de ninguém. Que a própria palavra é um engano, uma
armadilha que encobre, disfarça e
sepulta o precário edifício de nossos sonhos e verdades, todos assinalados pelo signo do incomunicável". Combinar estes lampejos
aos fragmentos de experiência e
traduzi-los na escrita é o que o
mantém vivo.
A forma do diário cai como
uma luva para a instabilidade desta incursão, subvertendo a lógica
natural das narrativas de viagens,
aqui, traduzida em registro da intimidade, como formula o protagonista: "Quando relato meus
vaivéns, minhas quedas, meus tolos delírios e minhas secretas orgias, o faço unicamente para deter, já quase no ar, dois ou três gritos bestiais, desgarrados grunhidos de caverna com os quais poderia dizer mais eficazmente o
que na verdade sinto e o que sou".
A perspectiva híbrida, de Mutis,
cosmopolitismo cindido entre as
memórias citadinas e européias e
a dos cafezais colombianos, matiza esta verdade e garante o interesse de seu Maqroll.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
A Neve do Almirante
Autor: Álvaro Mutis
Tradução: Luís Carlos Cabral
Editora: Record
Quanto: R$ 28,90 (212 págs.)
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