São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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O elogio do escracho

Alexandra Lambrinidis/20th Century Fox/AP Photo
Sacha Baron Cohen, de família judaica, como o anti-semita Borat


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A idéia de se fazer de bobo para expor o ridículo alheio não é nova na história da humanidade. Desde os bufões da Idade Média até hoje, entretanto, os humoristas lidam com um tênue limite entre o que causa graça e o que provoca constrangimento, nojo e até revolta.
O mais novo capítulo dessa comédia está sendo escrito por "Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América", que ficou em segundo lugar em bilheteria em seu fim de semana de estréia no Brasil, com público de mais de 100 mil pessoas.
Se por um lado o comediante Sacha Baron Cohen anda incomodando muita gente ao invadir o jantar da tradicional família norte-americana com um saquinho de cocô nas mãos -entre outras piadas escatológico-políticas-, com ele comemora-se a volta triunfal do humor escrachado, uma pá de cal sobre o politicamente correto.
Essa é a opinião geral de humoristas ouvidos pela Folha. Laert Sarrumor, líder da banda Língua de Trapo, acha que "Borat" retomou uma "estética do feio", que predominou nos anos 70 e 80, em trabalhos como os do grupo britânico Monty Python. "Era um período de crise política, pós-Guerra do Vietnã e durante a Guerra Fria. Em tempos conflituosos, a arte é mais interessante, e o humor, mais necessário."
A década seguinte viu um retrocesso nesse contexto. "Os transgressores dos anos 80 foram cuidar de suas doenças e depressões nos anos 90. E então passou a imperar o medo estético", diz Grace Gianoukas, que comanda o espetáculo teatral cômico "Terça Insana".
O publicitário Antonio Pedro Tabet, criador do site Kibe Loco, acha que o humor ficou, nos últimos anos, muito burocrático, por conta de pressões da sociedade e de leis que protegem direitos. "O mundo foi ficando cada vez mais chato, precisa pedir autorização para tudo, não pode fazer piada com nada. Por isso é bom o barulho que Borat está provocando."
O personagem de Sacha Cohen é um caricato repórter cazaque que vai à América buscar lições para "melhorar" seu país -habitado por estupradores, prostitutas e ladrões. Em situações e entrevistas do tipo pegadinha, expõe o racismo, o sexismo e a homofobia dos norte-americanos comuns.
O filme foi atacado, entre outros, pelo governo do Cazaquistão e por parte da comunidade judaica dos EUA, que reclamou das piadas de judeu disparadas pelo ator -também judeu.
"Entendo a preocupação das minorias e respeito quando as pessoas são realmente ofendidas. Mas a maioria dos que reclamam é gente que quer criar factóides", diz Tabet.

Sem controle
Para Elias Thomé Saliba, professor de história da Universidade de São Paulo e autor de "Raízes do Riso" (Companhia das Letras), tentativas de controle nos dias de hoje são inócuas. "Cada época coloca os limites de sua própria cultura, nesse sentido não há o que fazer." O historiador compara, ainda, o humor de Borat com o brasileiro. "O obsceno dele dialoga com o da Idade Média, um humor abaixo da linha da cintura. Isso também caracteriza o humor popular brasileiro."
Para Gianoukas, entretanto, nem tudo está liberado. "O artista precisa assumir uma responsabilidade diante da sociedade. Piada com gay eu acho errado, ajuda a reforçar o preconceito", diz. E acrescenta que Borat, por mais transgressor que pareça, carrega também uma visão preconceituosa.
"Com relação às mulheres, por exemplo, a prostituta é gorda, a feminista é mal-humorada e a mulher dele é feia. Ou seja, ele tem o mesmo padrão de beleza ocidental que critica."
Para Laerte, cartunista da Folha, Borat representa algo alvissareiro porque hoje existe um humor conservador em voga. "Todas essas piadas sobre celebridades, que invadem a vida das pessoas, trazem um ranço reacionário muito grande."
Já Sarrumor acha que mexer com detalhes pessoais, se estiver dentro do contexto de uma crítica mais ampla, é válido. "Se o político é corrupto, a obrigação do humorista é não perdoar, e o humor negro é uma arma. Não dá para ignorar que o Lula não tem um dedo, mas isso deve ser usado apenas como um instrumento para você fazer a crítica do mau político".
Para Millôr Fernandes humor e reacionarismo não combinam. "O humorista, se é humorista, jamais será um reacionário, um racista, ou qualquer coisa que se pareça. Mas não será uma política reacionária "ao contrário", que vai me convencer de que, da noite pro dia, não há mais negro safado nem judeu argentário, nem mulher chave de cadeia."
A cena mais "polêmica" entre os entrevistados foi, de longe, aquela em que Borat e seu colega brincam pelados no quarto e no elevador de um hotel. Uns a acharam gratuita. "Um apelo desnecessário", diz Gianukas. Outros, a mais espetacular. "Eu não gosto de escatologia, mas a cena do hotel é sensacional", diz o comediante Paulo Silvino.
Hélio de La Peña, do "Casseta & Planeta", por sua vez, diz que gostaria muito de tê-la escrito. "Mas jamais teria peito de filmar eu mesmo. O cara é mesmo muito corajoso."


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